Tintim tem sido um cult há muitas décadas. Um sucesso, mas no estilo cult: 200 milhões de cópias de seus livros foram vendidas desde que, há 70 anos, a editora francesa Casterman deu início à sua publicação nesse formato (antes, as histórias saíam só em jornal, na Bélgica, onde seu autor, Georges Remi, mais conhecido pelo pseudônimo Hergé, trabalhava).
Nada que se compare a Disney ou Schulz (criador de Charlie Brown), para ficar apenas na área dos quadrinhos. E nos Estados Unidos o personagem de Hergé, se não até agora completamente desconhecido, teve audiência muito limitada pelo menos até 1991, quando a HBO mostrou na TV paga uma série franco-canadense de desenho animado dirigida por Stéphane Bernasconi. Mesmo depois disso, encontrar livros de Tintim em livrarias americanas não era tarefa muito simples. A editora Little, Brown distribuía a edição britânica da Reed, em proporções tímidas. Em cidades com comunidades francófonas expressivas, como Nova York e Washington, às vezes era mais fácil achar uma cópia o livro da própria Casterman do que em inglês.
O gosto por Tintim não é do tipo massificado. Só uns poucos gostam. É difícil estabelecer com precisão por quê. Dezenas de teses já foram escritas para decifrar as razões do seu culto. Talvez seja a curiosidade geográfica, que levou Tintim, seu cãozinho Milu, os amigos capitão Haddock, professor Girassol e outros para todos os confins do mundo e até para a Lua. Ou pode ser o caráter ingênuo das tramas, muitas vezes mal amarradas, mas, ao mesmo tempo, cheias de citações históricas. Outra possibilidade é a extrema simpatia de todos os personagens, cheios de defeitos humanos e sem nenhuma ambição a super-herói enfadonho que nunca erra nem peca.
Cessão dos direitos a Spielberg
O caso de Steven Spielberg é mais ou menos o oposto do de Tintim. Ele é, de longe, o cineasta mais bem-sucedido em termos de bilheteria da história do cinema. Seus filmes renderam apenas nos EUA US$ 3,8 bilhões, o equivalente ao que arrecadaram juntos seus dois maiores competidores, Robert Zemeckis e James Cameron.
Mas, apesar de tanto sucesso comercial, Spielberg não vê reconhecidos em escala minimamente comparável os seus méritos de artista. Demorou para ele ganhar um Oscar como melhor diretor, por exemplo. Em 1986, seu filme A Cor Púrpura foi indicado para 11 Oscars, mas não para o de melhor diretor (e afinal ficou sem nenhum). É verdade que ele afinal ganhou dois Oscars (em 1993 por A Lista de Schindler e em 1998 por O Resgate do Soldado Ryan), além do honorário Irving G. Thalberg Memorial Award, que é uma espécie de consolação para quem é repetidamente esnobado pela Academia de Cinema de Hollywood. Mas suas três estatuetas estão muito longe das 26 de Walt Disney, sete de Billy Wilder e seis de Francis Ford Coppola.
Essa contradição era uma das razões da enorme expectativa em torno do filme que Spielberg faria a partir dos livros de Tintim. Como tem sido exaustivamente dito, o diretor – típico americano – nunca havia ouvido falar de Tintim na infância ou adolescência e só veio saber de sua existência aos 37 anos, em 1983, quando críticos franceses compararam Os Caçadores da Arca Perdida (1981) aos livros de Hergé. Spielberg foi atrás dos livros, em francês mesmo, e, apesar de não ter entendido uma palavra, se apaixonou, como outros artistas compatriotas seus (Andy Warhol e Roy Lichtenstein, por exemplo) já o haviam feito.
De fato, há muito em comum entre Indiana Jones e Tintim e há muito de cinema nos quadrinhos de Hergé, ele próprio um cinéfilo desde menino, que em 1948 ofereceu aos estúdios Disney os direitos para filmar seu personagem (e foi ignorado). Uma das últimas decisões de Hergé foi ceder esses direitos a Spielberg quando ele lhe propôs isso em 1983, ano em que o desenhista morreu.
Marketing e idiotice global
Levou quase três décadas para o filme sair. Spielberg diz que pretendia fazê-lo de modo tecnicamente convencional, com atores reais e câmeras analógicas, a exemplo, aliás, de toda a sua obra. Mas, segundo ele, deixou-se convencer por Peter Jackson (diretor da série O Senhor dos Anéis), este sim, fã desde criança de Tintim, que se incorporou ao projeto na condição de produtor do filme e usou a técnica de motion capture porque apenas com ela seria possível fazer justiça à ação engendrada nos quadrinhos de Hergé.
Motion capture é um processo pelo qual os movimentos corporais e faciais dos atores reais são mapeados digitalmente para fazer que os personagens animados pareçam mais “humanos” na tela. O sistema foi usado em alguns dos personagens inumanos de O Senhor dos Anéis (como Gollum) e em todos os de filmes, como Avatar (de James Cameron) e O Expresso Polar (de Robert Zemmeckis). Fosse qual fosse a técnica usada, a apropriação do cultuado Tintim pelo popular Spielberg iria causar reações apaixonadas. Mas o motion capture (ainda mais em 3D), sem dúvida, aumenta o desconforto entre os fãs de Hergé. Uma das características essenciais do traço do desenhista é sua simplicidade extrema. O rosto de Tintim, por exemplo, são apenas alguns pontos e rabiscos. É impossível reproduzi-los via motion capture. Mas o resultado visual em As Aventuras de Tintim não chega a ser tão estranho como foi o de Expresso Polar, em que os personagens se tornaram absolutamente bizarros, inexpressivos, como robôs que tentam parecer gente. Os de Tintim são mais naturais, embora diferentes demais dos originais.
Como previsível, muitos admiradores de Tintim ficaram apopléticos com o trabalho de Spielberg. Nicholas Lezard, crítico literário do jornal britânico The Guardian, talvez tenha sido o mais emblematicamente enfático: ele comparou o filme a um estupro da obra de Hergé e escreveu ter ficado de tal modo chocado que durante dois dias teve vontade de abraçar sua cópia de O Segredo do Licorne para consolá-la com sussurros de que tudo ficaria bem. “Mas eu sabia que não, que nada mais será a mesma coisa de novo. As forças do marketing e da idiotice global cuidarão para que nada mais seja como foi antes”, escreve o desesperançado Lezard.
Atenção minuciosa
É um evidente exagero. É claro que Spielberg toma certas liberdades com os livros em que se baseia, injustificáveis por muito pouco terem a ver com o espírito de Hergé (a cena final do duelo de guindastes entre Haddock e Sakharine, por exemplo, é especialmente pouco apropriada). Mas, em geral, o tratamento aos originais é respeitoso. O enredo do filme junta três livros de Tintim (O Segredo do Licorne, de 1943, O Tesouro de Rackham, o Terrível, de 1944, e O Caranguejo das Pinças de Ouro, de 1941). Mas tem citações e personagens de outros livros. A cantoria lírica Bianca Castafiore, O Rouxinol Milanês, por exemplo, que fez sua estreia em O Cetro de Ottokar, de 1939, está em diversas aventuras de Tintim, mas não nas três em que o filme se baseou.
Aliás, embora Castafiore nos livros sempre cante apenas uma música, a ária de Gounod conhecida como “Canção da Joia” (da ópera Fausto), no filme interpreta (com a voz da soprano Renée Fleming) a ária “Je Veux Vivre” (de Romeu e Julieta, do mesmo compositor). Apesar de deslizes e exageros, o tom do filme é quase reverencial em relação a Hergé. Logo no início, quando um personagem agonizante tenta dar uma informação a Tintim apontando para as letras de um jornal, o jornal é “Le Petit Vingtième”, suplemento infantil do diário católico de Bruxelas Le Vingtième Siècle, no qual Hergé publicou em 1928 seus primeiros quadrinhos, com um personagem escoteiro chamado Totor, que depois viraria o jornalista Tintim.
Spielberg, como Hergé, é detalhista. Para desenhar carros, navios, aviões, Hergé se baseava em fotos, cartões, maquetes, plantas de máquinas reais. Ao levar seus personagens aos quatro cantos da Terra, pesquisava geografia, história e cultura dos locais para não cometer incorreções. No apartamento de Tintim no filme, a câmera passa rapidamente por recortes de jornal enquadrados nas paredes: todos se referem a aventuras do herói em outros livros, mais um exemplo da atenção minuciosa que Spielberg teve ao fazer seu trabalho.
Sucesso internacional
Outra semelhança entre os dois autores é que ambos são acusados de racismo pelo patrulhamento ideológico que já vitimou, entre muitos gênios, Monteiro Lobato e Jorge Luis Borges. É evidente que Spielberg foi bastante cuidadoso para não abrir mais flancos nesse terreno cada vez mais movediço. Não deve ter sido à toa que o filme se baseou em livros nos quais aparecem poucos personagens com características raciais que pudessem servir de munição para quem queira ver preconceito.
Até o fim de semana passado, As Aventuras de Tintim teve bilheteria de U$ 336 milhões, 80% dos quais fora dos EUA. Para um filme que está há só um mês em cartaz nos EUA, não é pouco: ele já tem a 48ª melhor renda dos últimos 365 dias. Mas seu sucesso internacional é muito superior ao dos EUA: ele já está em 214º lugar nos maiores êxitos de bilheteria de todos os tempos com menos de dois meses em exibição. Talvez, mesmo com Spielberg, Tintim ainda seja demais para os americanos.
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[Carlos Eduardo Lins da Silva é livre-docente e doutor em comunicação pela USP, mestre em comunicação pela Michigan State University e editor da revista Política Externa]