Desde 1942, trens da empresa Vale transportam o minério de ferro extraído do solo de Itabira-MG, que se transforma em utilidades (carros, panelas, pregos, navios, pontes…) para povos do mundo todo. Em junho de 2005, um novo trem começou a levar a cidade natal do poeta Carlos Drummond de Andrade para outras estações.
Como as revistas de ideias da França, O TREM tem paixão pelo debate e pratica um jornalismo reflexivo. Democrítico, como se lê ao lado do logotipo: democrático e crítico. Além de reportagens, publica contos, poemas, crônicas, artigos, ensaios, resenhas, charges, cartuns, caricaturas e entrevistas com importantes nomes brasileiros.
“Temos a exótica mania de só entrevistar quem tem o que dizer”, ironiza Marcos Mendonça, citando alguns dos entrevistados recentes: o escritor Moacyr Scliar, o maestro Júlio Medaglia, o cronista Humberto Werneck, o poeta Manoel de Barros, o diretor de teatro Augusto Boal e o cineasta Cacá Diegues.
O rol de colaboradores, fixos ou eventuais, é enorme. Entre eles estão o polêmico escritor e historiador Fernando Jorge (São Paulo), o escritor e jornalista Edmilson Caminha (Brasília), o crítico de literatura Fábio Lucas (São Paulo), a poeta e crítica Olga Savary (Rio de Janeiro) e o cartunista Cláudio Alecrim (Rio de Janeiro). “Temos até colaboradores mineiros, se é que isso representa alguma vantagem”, brinca Marcos Mendonça, citando três deles, os jornalistas e escritores Hermínio Prates, Luís Giffoni e Jorge Fernando dos Santos, que trabalharam em alguns dos mais importantes órgãos de comunicação de Minas Gerais.
Se é lícito ouvir mineiros falando sobre mineiros, O TREM tem sido abonado por gente de alto calibre cultural. “É um primor de jornal, com boa informação e texto bem escrito”, elogiou o jornalista Lucas Mendes, em recente edição do programa Manhattan Connection, da Globo News. “Por ele transita a voz livre de Itabira. Cultura mineira efervescente, cujo combustível mais ativo é a indignação moral”, diz Fábio Lucas. “Extraordinário jornal de críticas”, abona o poeta Affonso Romano de Sant’Anna. “Preocupa-se em levar o leitor à reflexão e não se nos apresenta acanhado por sua opção de trilhar rumo ao pleno florescimento da inteligência”, analisa outro poeta mineiro, Carlos Lúcio Gontijo, também colaborador do tabloide.
Esses elogios, faz questão de ressaltar o editor Marcos Mendonça, são todos espontâneos, “afinal loas, para ter validade, devem ser assim, sem encomenda, vindas lá da camada pré-açúcar do coração”.
Devastação ambiental
Outra obra do jornal que ele destaca é a de romper tradições jornalísticas deploráveis, como a de publicar textos pagos por políticos ou empresários como se fossem apurados com rigor. “Nunca publicamos matéria paga. Odeio tal prática”, condena o jornalista: “Um acerto para imprimir matéria paga atira muitos no escuro e pelo menos dois na lama. Nas trevas ficam os leitores, que leem meros anúncios pensando ler reportagens. No barro caem o órgão que publicou a enganação e quem pagou pelo sujo trabalhinho”.
A ideia inicial, conta, era ser apenas um jornal de esquina, para falar as verdades sobre Itabira que na maioria dos órgãos da cidade são silenciadas pelo dinheiro da prefeitura. “No entanto, rapidamente extrapolou a aldeia. Bons colaboradores chegaram e o jornal, graças ao esforço de muitos, deixou de ser coisinha local”, explica o jornalista, dizendo que pretende conduzir O TREM a muito mais longe: “Temos credibilidade e aceitação, mas, como empresa, sair do ritmo maria-fumaça e entrar no desempenho trem-bala ainda é um desafio e tanto”.
O órgão está sempre atento para colher as derrapadas itabiranas. A produção de besteiras em Itabira, sobretudo na política, é superabundante, provoca o editor mineiro, anunciando gaiatamente que pretende lançar o Febeaita (Festival de Besteira que Assola Itabira), uma sucursal do Febeapá (Festival de Besteira que assola o Brasil), da dupla Sérgio Porto/Stanislaw Ponte Preta.
Em 2010, ele narra, Itabira promoveu um Pavilhão Literário sem literatura, apenas com um músico, um professor e uma jornalista. Este ano, comemorou o Dia do Disco de Vinil com sorteio de CDs. A Câmara de Vereadores já aventou a possibilidade de colocar fralda em burros para não sujar as ruas de um distrito, e um radialista local, comentando terremoto, mandou esta no ar: “Foi terrível, oito graus na escala Hitler”. Tremor, portanto, malhou O TREM, tão cruel quanto o nazismo.
Itabira, prossegue o jornalista, está ideal para jornais de humor. “Aqui há gaiola com canário na fachada da rádio Voo Livre. Há um urologista chamado Bráulio Pinto, cujo apelido é Pica-Pau. A prefeitura promove Feira de Animais Exóticos com vacas, pôneis e perus. Vereador fala na tribuna em ‘pombo da discórdia’. Outdoors recomendam: ‘Mantenha seu sorriso bucal saudável’. Advogados viajam em ‘estradas vacinais’. Jornalistas escrevem ‘Cassino da Orca’ e ‘Xícara da Silva’. De tudo isso se alimenta a locomotiva. Muitos trabalham de graça para nós”, diverte-se
Marcos Mendonça, citando mais uma, e garantindo ser tudo verdade: “Em 2005, a prefeitura escreveu com luzes, em um pico, esta criativa frase: ‘Feliz Natal e próspero ano novo’. O povo foi furtando lâmpadas e ficou assim: Eliz a tal prospera no ovo”.
O jornal gozador tem o lado sério, não deve ser visto como um inconsequente pasquim galhofeiro. Às vezes, de tão duro na defesa de suas idiossincrasias, chega a ser casmurro. Estimular a leitura, gritar pela preservação do patrimônio histórico mineiro, exigir honestidade e competência na política e cobrar da empresa Vale a dívida histórica que tem com Itabira, onde é gigantesca a devastação ambiental causada pela segunda maior mineradora do mundo, são algumas das lutas ferrenhas do jornal. Haja tenacidade, ainda bem que O TREM é de ferro.Curiosidade: é possível ler numa página um artigo crítico contra a Vale e logo na seguinte um anúncio da própria empresa.
Fonte confiável
Fazer jornal combativo no interior de Minas Gerais é difícil. Marcos Mendonça lembra que no início teve dificuldade até para impressão e não se esquece do não que escutou numa gráfica da Igreja Católica. “No terceiro número, levei o jornal para rodar na gráfica Diocesana. Combinamos preço, acertamos tudo, mas o gerente, após ler títulos e notas, me avisou: ‘Não posso imprimir porque vocês criticam a prefeitura’. Senti-me no século XV, mas foi um incentivo e tanto. Lembrei-me do inglês George Orwell (‘Jornalismo é publicar o que alguém não quer que seja publicado’) e saí com a certeza de que o jornal estava incomodando o poder, ou seja, cumprindo a obrigação”. Desde então, a publicação passou a ser impressa em João Monlevade, vizinha a Itabira.
Outra dificuldade superada com trabalho é a censura econômica imposta pela prefeitura e câmara de vereadores da cidade. De acordo com o jornalista, o poder público local anuncia até em paralama de carroça quebrada, mas nunca n’O TREM. “Estamos no index prohibitorum. Jamais entrou um centavo de dinheiro público.” A má vontade dos políticos com o tabloide se deve às críticas. O jornal não economiza mesmo – jornalismo só há de dois tipos: chapa-branca ou chapa-quente. Desde junho de 2010, por exemplo, publica uma série de textos cobrando do prefeito de Itabira, João Izael, as promessas que ele fez para se eleger em 2004 e se reeleger em 2008, mas que no poder não tem se lembrado de cumpri-las. “Somos detestados pelos políticos sacanalhordas [neologismo que o jornal criou para sacanas, canalhas e calhordas] mas, em compensação, temos um leitorado fiel, que, por meio de assinaturas, mantém O TREM nos trilhos”.
A receita é: jornal útil tem leitores e credibilidade. Com leitores e credibilidade, vira fonte confiável conquista anunciantes e assinantes. Com esses, assegura a permanência sem depender de dinheiro público. Fácil? Nem tanto, mas os itabiranos estão provando que é possível fazê-lo até mesmo no interior mineiro. O Brasil seria melhor se toda cidade tivesse pelo menos um jornal com a disposição da locomotiva itabirana.