O que têm em comum o candidato republicano Newt Gingrich e Luiza, a adolescente paraibana que voltou do Canadá?
Eles representam dois lados da mesma moeda, ambos atropelados pelo fenômeno do contágio digital.
O âncora Carlos Nascimento não conteve sua nostalgia analógica e comentou, na abertura do seu telejornal: “Nós já fomos mais inteligentes”. A mesma franqueza não se viu por aqui, onde o âncora da CNN abriu o debate republicano na quinta-feira (19/1) pedindo a Gingrich para comentar a entrevista de sua ex-mulher à rede ABC, que “tinha se tornado viral”.
Explico: Brian Ross, o principal repórter investigativo da ABC, com 40 anos de profissão e alguns prêmios na estante, pediu a Marianne Gingrich para repetir o que já contou a outros repórteres no passado: seu ex-marido teve um longo caso com Callista, uma funcionária do Congresso, hoje a terceira senhora Gingrich, e, quando descoberto, não pediu logo divórcio, pediu tolerância para o arranjo tripartite.
Indústria do ri
Fama viral
Brian Ross é mais conhecido por produzir furos sobre Osama Bin Laden e trabalho escravo. A notícia requentada decolou graças à cumplicidade de jornalistas e editores veteranos cuja inteligência pode não ter encolhido, mas cujo apreço pela profissão certamente já foi maior. E a CNN achou por bem abrir o debate político com o pecado sexual.
“O senhor gostaria de comentar?”, perguntou o mediador John King.
“Não gostaria, mas vou ter que comentar”, respondeu Gingrich e foi ovacionado de pé pela plateia predominantemente conservadora.
Touché.
Newt Gingrich, o fanfarrão hipócrita, tal como o personagem do samba de Chico Buarque, deu pernada a três por quatro e quem se despenteou foi o âncora imóvel.
A hipocrisia da vida privada de Gingrich não prejudicou o candidato nas primárias da Carolina do sul. Aposto que a hipocrisia da mídia, escondida atrás da desculpa “se tornou viral” para se lambuzar com o que não tem relevância, deu muitos votos ao homem que defendeu o impeachment de Bill Clinton enquanto dormia com a funcionária Callista.
Estou incluída entre os mais de 4 milhões de internautas espectadores do vídeo de publicidade que transformou Luiza numa commodity digital. Fui compelida a assistir quando me enviaram o comentário de Nascimento sobre o tipo de fama que tem origem no sarcasmo contemporâneo, na comédia da qual Jon Stewart é um praticante muito superior a seus imitadores. Stewart e sua cria Stephen Colbert ao menos denunciam corrupção e hipocrisia, a ponto de criar um comitê político para expor a insanidade da lei de financiamento de campanhas. Ambos se preocupam em entreter, mas há camadas de humanidade sob suas personas cômicas.
A jovem Luiza e sua antecessora, Rebecca Black, do esquecido vídeo Friday, são protagonistas do jogo da fama viral que não controlam. É entrevistada não porque fez alguma coisa, mas porque milhões de pessoas se divertem zombando de seu pai. O colunista social da Paraíba promove, em seu sotaque carregado, o prédio com nome de boulevard parisiense e a seriedade com que comenta “menos Luiza, que está no Canadá”, oferece um momento de candor perfeito para a indústria do ridículo online.
País conceitual
O Canadá é um eterno tema de piadas de americanos, em grande parte por suas qualidades, consideradas entediantes. A população esparsa e cordial, as cidades limpas, a aversão ao confronto e o senso de humor autodepreciativo servem de farto material para comédia stand-up. Num episódio da série animada South Park, pais americanos, incapazes de se responsabilizar pelo destino de seus filhos, conclamam, na paródia de um musical: “Culpem o Canadá!”.
Assim como Marianne Gingrich choramingando pelo adultério do ex-marido não merece destaque num debate da eleição americana mais dramática das últimas décadas, a viral e sorridente Luiza habita um ecossistema contra o qual o jornalismo não consegue se vacinar.
O Canadá geográfico está fora do meu alcance. Mas o país conceitual, este sim, é um bom lugar para se pedir asilo.
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[Lúcia Guimarães é jornalista, em Nova York]