Nos últimos dez anos, a popularização da internet e dos aparelhos digitais (como celulares com câmeras embutidas, iPhones e iPads) levou a um fenômeno de produção e compartilhamento de conteúdo nunca visto antes. O espaço ilimitado da web permitiu que todo cidadão na posse de uma conexão rápida e dos meios digitais necessários pudesse publicar sua própria criação, seja ela em forma de texto (em blogs ou nas redes sociais), foto (no Flickr e sites do gênero) ou vídeo (no YouTube). Segundo pesquisa realizada em abril de 2010 pela agência de publicidade F/Nazca com 2.247 brasileiros de 12 anos ou mais, 53% dos entrevistados já postaram conteúdo próprio na internet.
Em um cenário de maior acesso a esses meios de produção, de publicação de informações on-line e de queda na credibilidade dos grandes veículos jornalísticos, surgiu, na web, uma nova forma de produção de notícias em que cada usuário poderia dar sua própria versão dos fatos. Nascia o chamado webjornalismo participativo (também chamado de colaborativo ou cidadão) que, nas palavras dos pesquisadores Alex Primo e Marcelo Träsel, “práticas desenvolvidas em seções ou na totalidade de um periódico noticioso na Web, onde a fronteira entre produção e leitura de notícias não pode ser claramente demarcada ou não existe”. O simples leitor das notícias deixava de ser apenas receptor de conteúdo para ajudar a produzi-lo.
O webjornalismo participativo nasceu dentro do espírito colaborativo da internet, que prega que a notícia não deve ser tratada como um bem comercial e, portanto, deve ser livre e aberta a todo cidadão. A essa noção, Catarina Moura dá o nome de jornalismo open source. Ela compara essa produção jornalística com os softwares compartilhados pela web com o código aberto, permitindo que programadores possam modificá-los, melhorá-los e repassá-los a outros usuários de forma gratuita. Imbuídos dessa filosofia surgiram os primeiros sites de webjornalismo participativo, como o Indymedia, em 1999, e o OhmyNews International, em 2000.
Não demorou para que os próprios veículos tradicionais percebessem que era necessário dar mais espaço aos leitores e aumentar o contato desses com a produção das notícias e os jornalistas. Foram abertos espaços para comentários e fóruns de discussão, além de abrir espaço para a participação dentro dos portais. Um dos exemplos mais famosos de webjornalismo participativo comandado por uma grande empresa jornalística é o “iReport“, da rede de TV CNN. No Brasil, destacam-se o “VC Repórter“, do portal Terra e o “VC no G1“, ligado às Organizações Globo.
Para estudar esse novo tipo de produção jornalística e entender sua produção, decidi analisar por um período de 15 dias (entre 22 de agosto e 5 de setembro de 2011) as notícias publicadas no “VC no G1”. Foram levantadas 31 postagens baseadas em materiais enviados pelos leitores do portal, sejam eles depoimentos, fotos ou vídeos. Para fazer esse envio, o usuário deve estar inscrito no portal, fornecendo nome completo e endereço de e-mail, além de seguir as regras e os critérios do próprio site. Uma delas, por exemplo, diz que o fato precisa ser atual e não datado e que o texto enviado não pode difamar ou ofender alguém. Todas as informações recebidas pelo portal são analisadas pelos editores e posteriormente publicadas.
Após a seleção e análise das postagens, pude constatar que já existe entre os leitores do portal a noção de valores-notícia, ou seja, as qualidades dos fatos que os tornam propícios a serem transformados em notícia. Foi levantado que os usuários do “VC no G1” dão destaque a temas próximos a eles, em especial às notícias relacionadas a meio ambiente (desastres climáticos, tempo, denúncias com relação a poluição, entre outros) e transporte (acidentes, panes no metrô, dificuldades de locomoção, etc.). Notícia, para o leitor do G1, é oacontecimento pouco usual, diferente, e que afeta o dia-a-dia e a rotina de quem envia o material. Essa personalização dos fatos fica evidente em algumas postagens, escritas em primeira pessoa, como um depoimento. Por outro lado, em outras ocasiões, foram encontradas publicações em tom mais impessoal, claramente editadas pelos responsáveis pelo site.
Gatekeepingou gatewatching?
Uma das principais perguntas que a pesquisa se propôs a responder foi qual o tamanho do papel dos editores em um portal como o “VC no G1”. Foi constatado que, apesar de contar com a participação dos leitores, ainda há um controle rígido sobre o que deve e o que não deve ser publicado no portal.
Fundamental para entender esse processo é o conceito clássico de gatekeeping. Os jornalistas seriam responsáveis não apenas entre decidir o que é e o que não é notícia, mas também selecionar aquelas mais importantes e merecem preencher o espaço reduzido dos jornais. Logo, o profissional funcionaria como um guardião do portão (gatekeeper), escolhendo as notícias que são publicadas e as que não são.
O pesquisador Axel Bruns, por outro lado, acredita que o papel de gatekeeper não se encaixa mais na mediação de um jornalismo para web, particularmente em portais que praticam o webjornalismo participativo. Para ele, o que existe nesses casos é um gatewatcher (o vigia do portão), que age mais como moderador do que como selecionador. O gatewatching é reflexo da era digital, onde as informações são publicadas independentemente do espaço (que é ilimitado). Um exemplo de gatewatching é o praticado na Wikipédia, site onde qualquer usuário pode modificar, acrescentar ou editar os verbetes publicados. Na enciclopédia aberta existem moderadores que analisam essas mudanças, corrigindo erros e desvios que não obedeçam os padrões éticos do site.
Ao analisar o “VC no G1”, percebe-se que as notícias são publicadas ainda seguindo o padrão do gatekeeping. A seleção e edição é exclusiva dos jornalistas que comandam o site, seja para retirar aquilo que não se encaixa nos padrões de qualidade impostos, seja para complementar o conteúdo postado. Ao leitor, fica restrito o envio do material, que ainda passa pela seleção dos editores, correndo o risco de não ser publicado. Ao contrário de um portal que pratica o verdadeiro jornalismo open source, o VC no G1 é fechado, já que a decisão final permanece nas mãos de seus responsáveis.
Jornalismo participativo: o leitor como autor
Mas com tanto rigor e edição, o que faz com que o VC no G1 seja um portal de webjornalismo participativo? O que o diferencia dos veículos que comunicação que recebem sugestões de pauta dos leitores, seja por cartas, telefonemas ou pela própria web? A diferença está na autoria. Enquanto que nas redações tradicionais, a relação entre jornalista e leitor é oposta (os primeiros escrevem e os segundos leem), no jornalismo participativo a relação se aproxima mais de uma parceria.
Se antes, ao escrever uma carta com uma sugestão de pauta, o leitor apenas iniciava um processo que tinha como ator principal o jornalista – apuração, checagem, edição –, agora o próprio público começa a fazer parte dessa linha de produção. Ao encaminhar sua foto, versão ou vídeo, o leitor já iniciou o processo de apuração e pode ver seu trabalho publicado. O que acontece, no caso do“VC no G1”, é a complementação da equipe de jornalistas profissionais que mantêm o portal. Não há mais a oposição; o jornalista, por hora, é leitor, enquanto que este último também assume o papel de jornalista.
O jornalismo participativo, portanto, ajuda os jornalistas profissionais a entenderem melhor seu público e melhorar o contato com este. Os leitores, por sua vez, ganham mais espaço na mídia e mais liberdade de se expressar sobre seu cotidiano. Se, por um lado, as restrições e a edição excessiva mostra certa desconfiança dos jornalistas e pode afastar parte do público, por outro ajuda a manter certos padrões e obedecer certas posturas éticas da profissão (como a de ouvir todos os lados de um problema, por exemplo).
A maior participação dos leitores, que deixaram de ser passivos e tornaram-se mais exigentes e críticos, é inevitável. Cabe aos jornalistas aprenderem a lidar com esse novo personagem e entendê-lo melhor. Para isso, é preciso diálogo e transparência. O estudo do “VC no G1” ajudou a entender os leitores-jornalistas e os profissionais como complementares no processo de apuração ampla e correta dos fatos. Uma relação que deixou de ser de mão única e agora começa a tornar-se mais complexa.
Referências
BRAMBILLA, Ana Maria. Jornalismo open source em busca de credibilidade. In: Intercom 2005 – XXVIII Congresso Brasileiro Interdisciplinar de Ciências da Comunicação, 09, 2005, Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: 2005.
MOTA, Célia Maria Ladeira. “Gatewatching: um novo tempo de observadores“. In: Observatório Mídia & Política
PRIMO, Alex ; TRÄSEL, Marcelo Ruschel . Webjornalismo participativo e a produção aberta de notícias. Contracampo (UFF), v. 14, p. 37-56, 2006.
TAVARES, Judy Lima. A Construção do Persona Digital: Nova Identidade Assumida pelos Integrantes da Web 2.0. Biblioteca Online de Ciências da Comunicação: 2010.
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[Felipe Müller é jornalista graduado pela UnB]