Por ingenuidade, deslumbramento, ignorância ou ressentimento contra as “velhas mídias”, muitas pessoas ao longo dos quase 20 anos que já dura a disseminação de veículos jornalísticos ou parajornalísticos na internet insistem na mitologia de que estes, ao contrário dos antigos, impedem que mentiras ou distorções prosperem e iludam a sociedade.
Jornais, revistas, emissoras de rádio e TV, de acordo com essa lenda urbana, passaram a vida manipulando o público ao lhe oferecer informações falsas ou enviesadas. Com o advento da internet, como praticamente todos os cidadãos têm a possibilidade de se tornar emissor de informações e opiniões, tais abusos seriam desmascarados e a sociedade teria garantido o seu direito de sempre saber “a verdade”.
Evidentemente, isso tudo não passa de ilusão porque nenhum meio de comunicação em nenhuma plataforma tecnológica nem sob nenhum tipo de modelo de propriedade traz inerente em si a condição de honestidade no relato de fatos e transcrições de declarações, as quais são feitas sempre por seres humanos, naturalmente imperfeitos e sujeitos a vários tipos de conduta moral.
Mitos e fantasias
Do mesmo modo como incontáveis vezes os veículos do passado de fato cometeram desvios éticos de maior ou menor gravidade, igualmente os cibernéticos o têm feito em grande quantidade e variedade.
Com uma agravante: quando um jornal, revista ou emissora comete tais deslizes, é relativamente fácil para quem se sente prejudicado identificar a responsabilidade (se não individual, pelo menos corporativa) e tentar exigir reparação, seja na Justiça ou junto à sociedade.
Já quando esse tipo de ocorrência se dá no infinito espaço cibernético, é praticamente impossível localizar quem originou a falsidade e todos os que a espalharam pela rede. Sem contar que muitos desses se protegem sob o manto covarde do anonimato.
Os exemplos se sucedem, mas um recente chama a atenção. No início de fevereiro, quando Mitt Romney parecia estar arrancando de vez à frente de seus adversários na corrida pelo direito de enfrentar o presidente Barack Obama como candidato da oposição na eleição presidencial americana de novembro próximo, ele deu uma declaração à rede de TV CNN que, retalhada, foi intensamente repetida por dias na internet e na “velha mídia”, em prejuízo à sua candidatura. Romney disse:
“Não estou preocupado com os mais pobres, que contam com uma rede de proteção, e, se precisar, vou consertá-la. Tampouco estou preocupado com os muito ricos, que estão se dando bem. Estou preocupado com o que é o coração dos EUA, os 95% de americanos que estão em apuros”.
O vídeo e áudio estavam disponíveis no site da CNN. Alguém (uma, duas, dezenas de pessoas ou organizações, quem vai saber?) cortou a longa declaração logo ao final da primeira oração (“Não estou preocupado com os mais pobres”) e a jogou na internet. É claro que ela provocou grande barulho.
Repetida à exaustão na rede virtual, a frase amputada do contexto foi também bastante utilizada por jornalistas e colunistas da “grande mídia” que se opõem a Romney, e que não tiveram a decência de contar a seus leitores e espectadores a história toda (ou não se importaram em procurar saber se a história toda estava contada e se a declaração do político era aquela mesmo).
Romney perdeu a posição de vantagem de que desfrutava quando esse episódio ocorreu. Mas não se pode atribuir seu declínio ao incidente, embora seja bem provável que alguma fantasia venha a se consolidar com essa explicação para sua queda, assim como até hoje, meio século depois, ainda se acredita que John Kennedy ganhou a eleição de 1960 contra Richard Nixon por causa de sua suposta melhor aparição nos debates pela TV entre os dois.
Toque pessoal
Eleições dificilmente são ganhas ou perdidas devido a qualquer ação de meios de comunicação. Não foi a edição do debate entre Collor e Lula pela Rede Globo que definiu o pleito presidencial brasileiro de 1989, nem a pergunta de Boris Casoy sobre Deus a Fernando Henrique Cardoso no debate entre os candidatos à prefeitura de São Paulo, em 1985, que fez Jânio Quadros vencer.
Mas quem consultar a Wikipédia, que os admiradores da internet acham ser superior à Enciclopédia Britânica, por todos os motivos, se for se informar sobre o pleito paulistano de 1985 vai ler que “a pergunta e a resposta foram considerados como fatores decisivos para a derrota do candidato”. Claro, o verbete não cita nenhum estudo científico que corrobore a afirmação.
A Enciclopédia Britânica contém vários erros. Mas ela foi elaborada com base no trabalho de profissionais formados para esse tipo de tarefa, identificáveis e comprometidos com princípios e valores, que alguns podem não ter seguido fielmente, mas existentes e claros.
A Wikipédia, “democrática”, tem estrutura de produção muito menos passível de atribuição de responsabilidades claras a respeito de quem comete erros e por que razões os comete.
Como em qualquer situação, quem erra e mente ou acerta e se conduz com honestidade são pessoas, não veículos.
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[Carlos Eduardo Lins da Silva é jornalista]