Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A falta da voz brasileira na Globo

Mais de uma vez eu já havia notado que os apresentadores de telejornalismo têm uma língua diferente da falada no Brasil. Mas a coisa se tornou mais séria quando percebi que, mesmo fora do trator absoluto do Jornal Nacional, os apresentadores locais, de cada região, também falavam uma outra língua. O que me despertou foi uma reportagem sobre o trânsito na Avenida Beberibe, no bairro de Água Fria, que tão bem conheço. E não sei se foi um despertar ou um escândalo. Olhem: clique aqui.

Na ocasião, o repórter, o apresentador, as chamadas, somente chamavam Beberibe de Bê-Bê-ribe. O que era aquilo? É histórico, desde a mais tenra infância, que essa avenida sempre tenha sido chamada de Bibiribe, ainda que se escrevesse e se escreva Beberibe.

Ligo para a redação da Globo Nordeste. Um jornalista me atende. Falo, na minha forma errada de falar, como aprenderia depois:

“Amigo, por que vocês falam bê-bê-ribe, em vez de bibiribe?”

“Porque é o certo, senhor. Bé-Bé é Bebê.”

“Sério? Quem ensina isso é algum mestre da língua portuguesa?”

“Não, senhor. O certo, quem nos ensina é uma fonoaudióloga.”

Apresentadores se envergonham da própria fala

Ah, bom. Para o certo erram de mestre. Mas daí pude ver que a fonoaudióloga, como autoridade da língua portuguesa, é uma ignorância que vem da matriz, lá no Rio. Ou seja, assim me falou a pesquisa:

“Em 1974, a Rede Globo iniciou um treinamento dos repórteres de vídeo… Nesse período a fonoaudióloga Glorinha Beuttenmüller começou a trabalhar na Globo. Como conta Alice-Maria, uma das idealizadoras do Jornal Nacional, ‘sentimos a necessidade de alguém que orientasse sua formação para que falassem com naturalidade’.”

Foi nesta época que Beuttenmüller começou a uniformizar a fala dos repórteres e locutores espalhados pelo país, amenizando os sotaques regionais. No seu trabalho de definição de um padrão nacional, a fonoaudióloga se pautou nas decisões de um congresso de filologia realizado em Salvador, em 1956, no qual ficou acertado que a pronúncia-padrão do português falado no Brasil “seria do Rio de Janeiro” (destaque meu).

Mas isso é a morte da língua. É um extermínio das falas regionais, na voz dos repórteres e apresentadores. Os falares diversos, certos/errados aos quais Manuel Bandeira já se referia no verso “Vinha da boca do povo na língua errada do povo/ Língua certa do povo” ganham aqui um status de anulação da identidade em que os apresentadores nativos se envergonham da própria fala. Assim, repórteres locais, “nativos”, se referem ao pequi do Ceará como “pê-qui”, enquanto os agricultores respondem com um piqui.

JUazeiro virou JÔazeiro

De um modo geral, as vogais abertas, uma característica do Nordeste, passaram a se pronunciar fechadas: nosso é, de “E”, virou ê. E defunto (difunto, em nossa fala “errada”) se transformou em dê-funto. Coração não é mais córa-ção, é côra-ção. Olinda, que o prefeito da cidade e todo olindense chamam de Ó-linda, nos telejornais virou Ô-linda. Diabo, falar Ó-linda é histórico, desde Duarte Coelho. Coisa mais bela não há que a juventude gritando no carnaval “Ó-linda, quero cantar a ti esta canção”. Já Ô-linda é de uma língua artificial, que nem é do sudeste nem, muito menos, do Nordeste. É uma outra coisa, um ridículo sem fim, tão risível quanto os nordestinos de telenovela, com os sotaques caricaturais em tipos de físicos europeus.

Esse ar “civilizado”de apresentadores regionais mereceria um Molière. Enunciam, sempre sob orientação do fonoaudiólogo, “mê-ninô”, “bô-necÔ”, enquanto o povo, na história viva da língua, continua com miní-nu e buneco. O que antes era uma transformação do sotaque, pois na telinha da sala os apresentadores falariam o português “correto”, atingiu algo mais grave: na sua imensa e inesgotável ignorância, eles passaram a mudar os nomes dos lugares naturais da região.

O tão natural Pernambuco, que dizemos Pér-nambuco, se pronuncia agora como Pêr-nambuco. E Petrolina, Pé-tró-lina, uma cidade de referência do desenvolvimento local, virou outra coisa: Pê-trô-lina. E mais este “Nóbel” da ortoépia televisiva: de tal maneira mudaram e mudam até os nomes das cidades nordestinas, que, acreditem, amigos, eu vi: sabedores que são da tendência regional de transformar o “o” em “u”, um repórter rebatizou a cidade de Juazeiro na Bahia. Virou JÔ-azeiro! O que tem lá a sua lógica: se o povo fala JUazeiro, só podia mesmo ser Jô-azeiro.

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[Urariano Mota é jornalista e escritor]