Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Era uma vez um Império que fazia cinema

Os prêmios da Academia de Hollywood foram entregues pela primeira vez no dia 16 de maio de 1929. O contexto político e social não pode ser mais significativo: faltam apenas alguns meses para o grande crack de outubro, os Estados Unidos vivem montados na maior bolha especulativa de sua história, a Europa se contorce no caos sob os efeitos das crises políticas que afetam a maior parte de seus países e, na periferia do mundo, poucos sabem ainda o que significa a palavra Hollywood, embora muitos já tenham percebido na própria pele em que consiste o novo poderio norte-americano.

O prêmio de melhor filme coube a Wings, um melodrama de William Wellman sem nenhuma importância cinematográfica hoje em dia, mas cuja história se mostra reveladora do papel que jogou o cinema norte-americano ao longo da maior parte do século 20. O filme conta a história de dois homens (Jack Powell e David Armstrong) confrontados pelo amor de uma mulher (Jobyna Ralston), até que estoura a Primeira Guerra Mundial e os sentimentos patrióticos se colocam acima das disputas amorosas. No final, todos terminam contentes e felizes, os homens compreendem que não existe mulher que valha mais do que a amizade que se estabelece entre eles na frente de guerra e matar o inimigo é mais importante que qualquer ciúme doméstico.

Estética mimetizada

Desde que sintetizou sua extraordinária maneira de narrar, no começo do século 20, baseada na síntese extrema dos relatos, a importância das imagens acima dos textos e na construção de heróis de fácil assimilação pública, o cinema americano cumpriu dois papéis de vital importância em nível político: enviou uma mensagem de unificação nacional à convulsionada América da época, construindo uma potente mitologia patriótica e estabeleceu um modelo ideal de relato impregnado de densos valores morais, que seria estabelecido como padrão de um modelo de contar as histórias na periferia do mundo. O novo império político e econômico havia encontrado no cinema um instrumento de poder soft de primeiríssima importância.

Ao glamour das novas estrelas, que começariam a brilhar com mais força a partir do cinema sonoro em 1930, se oporia, após1933, um relato muito mais tosco e menos soft: a delirante propaganda nazista instrumentalizada por Joseph Goebbels. Como Hollywood, Goebbels também pretendia criar heróis e exaltar os valores patrióticos. Mas não tinha em conta que os principais recursos artísticos alemães marcharam para o exílio e estavam pondo todo seu conhecimento cinematográfico a serviço dos Estados Unidos.

Iluminadores, atrizes, diretores, muitos dos grandes mestres do esplendor em preto e branco do cinema americano da convulsionada década de 1940 provêm da Alemanha e deixaram sua marca indelével na nova estética de Hollywood.

O relato americano se torna tão potente, sobretudo depois da vitória sobre a Alemanha nazista na Segunda Guerra Mundial, que não tarda em começar a ser assumido como o grande modelo por excelência, sendo copiado sem clemência pela incipiente indústria cinematográfica da periferia, sobretudo na América Latina. Para perceber essa influência bastaria realizar um simples exercício de mistura de imagens tomadas ao acaso dos filmes mais populares produzidos no continente durante esses 20 anos cruciais, especialmente pelas potentes cinematografias nacionais mexicanas e argentinas: a mesma iluminação, o mesmo uso da música, os mesmos temas amorosos, o mesmo modo de construir os heróis.

Modo de dizer

Hollywood impõe dessa maneira uma poderosa narrativa própria que se reproduz internamente em cada país graças à numerosa trupe de imitadores que surgem em cada canto do mundo. Em 1956, como uma espécie de resposta indireta aos primeiros questionamentos europeus a esta narrativa invasiva – sobretudo franceses –, a Academia cria o Oscar ao Melhor Filme de língua não inglesa. O prêmio havia começado a ser outorgado de fato em 1947, ao mesmo tempo em que os EUA estreavam como nova potência hegemônica mundial, mas não se afirmou até meados dos anos 1950, quando ficou estabelecido como um prêmio a mais, como categoria permanente.

Durante as primeiras épocas o galardão foi utilizado para premiar o melhor do cinema europeu contemporâneo. Premiando Vitorio De Sica, Federico Fellini, Luis Buñuel, François Truffaut ou Ingmar Bergman, Hollywood se permitia um toque de arte diferente do que surgia de sua própria colheita e tratava de driblar as críticas à sua narrativa mais ideológica.

O chamado Terceiro Mundo, enquanto isso, não merecia sua atenção. Com a exceção de um ou outro filme japonês e de algum filme de diretor europeu produzido em países africanos, a periferia cinematográfica do mundo não obteve nenhum prêmio da Academia até 1985, quando o argentino Luis Puenzo ganhou o prêmio com A história oficial, um duro relato sobre os desaparecidos durante a ditadura militar do general Jorge Rafael Videla. E teve que esperar até a primeira década do presente século para ver premiadas produções da África do Sul, Taiwan ou Bósnia-Herzegovina.

Na atualidade a Academia padece da mesma anemia de poder que pouco a pouco foi se apoderando do império americano. Embora não tenha deixado de impor densos valores culturais ao resto do mundo, o glamour de suas estrelas já não brilha como antes e seu modelo narrativo já não produz tanto impacto. Vítima de seu próprio êxito, Hollywood se esforça a cada ano em renovar as expectativas em um mundo no qual os relatos se tornaram mais dispersos e menos hegemônicos graças à proliferação das novas tecnologias da comunicação. And the winner is… a periferia do mundo, que tem ainda muito para dizer e não pode nem quer dizer do jeito hollywoodiano.

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[Oscar Guisoni, para Agência Carta Maior]