Lá se me parte a alma levada/ No torvelim da mascarada,/ A gargalhar em doudo assomo…/ Evoé Momo! (Manuel Bandeira, 1918)
A crônica carnavalesca foi a representação jornalística de um certo tipo de carnaval – um carnaval em que, nas fissuras da “boa razão burguesa”, encontrava-se espaço para a afirmação de uma visão de mundo marcada pela crítica, pela espontaneidade, pelo humor e pela verve satírica. Nas primeiras décadas do século XX, esta festa tinha uma clara dimensão ritual de culto a um deus pagão – o pândego e zombeteiro Momo, filho do Sono e da Noite. Expulso do Olimpo por ridicularizar os deuses e suas obras, o “deus da burla, das críticas maliciosas e das coisas espirituosas”, veio pedir asilo na folia carioca, sendo acolhido com simpatia pelos foliões da cidade e cultuado com adoração nas colunas especializadas. Tornou-se, nas palavras de um cronista, “a cousa mais amada que existe no Rio, acima mesmo do feijão e da carne seca”.
Dias de deboche ritual
Exagero falar-se em exaltação de um deus da Antiguidade, no Rio de Janeiro, em pleno processo de industrialização e modernização da vida social? Não, se pensarmos Momo como um princípio que se tem revelado uma constante ao longo das épocas e dos séculos; um princípio ou um tipo que, apesar da sua permanência e universalidade, possui temporalidade e historicidade. Esta constante burlesca e paródica que no carnaval brasileiro calhou de assumir a mesma forma de que se revestia na mitologia clássica esteve bastante presente na vida do carioca nas primeiras décadas do século passado, ocupando, tanto na festa quanto no cronismo carnavalesco, um lugar insuspeitado para nós contemporâneos do carnaval espetáculo. Se hoje o riso já não se encontra nos desfiles televisivos do carnaval globeleza, nos tempos em que a crônica era inspirada pelo deus Momo, a graça tinha primazia sobre o luxo e era indissociável dos demais elementos da festa, manifestando-se em suas falas, fantasias, alegorias, canções e gestos. Os cronistas K.Rapeta e Rojão sintetizam em crônica exemplar este espírito carnavalesco de outrora no qual a convulsão da gargalhada confundia-se com o frêmito do prazer sensual e o tremor da multidão inebriada.
Dominando a alma sensível do carioca sempre pronto às verdadeiras dedicações e sacrifícios, mas trazendo na massa do sangue o vírus da hilaridade para tudo que é truanesco, encontrou, o velho Deus, terreno propício para sua tarefa. (…).
A postos velhos foliões, sem desfalecimentos, na espontânea tarefa de festejar o rei da alegria, da graça e do ruído. Evoé! Evoé! Evoé!
Pastoras lindas e juvenis, de olhos chamejantes que queimam corações, filhas gloriosas de Eva pecadora, cantai, vibrai, sacudi com alegria vossas castanholas, entoando na mais embaladora canção as saudações a Momo.
Mocidade forte e gloriosa, deixai correr como cristalina fonte a verve e a sátira tão naturais aos filhos desta cosmópolis. (…)
Momo é chegado. Reina a loucura e a folia. Evoé! Evoé! (Gazeta de Notícias,1925).
O “reinado de Momo”, disse um cronista, “preside boa parte dos destinos da cidade. Está nos hábitos e nas mentes, no sentimentalismo e nas idéias, na concepção original do divertimento e da graça do povo desta capital” (Gazeta de Notícias, 22.2.1925).
Princípio da festa
Evoé – o grito festivo com que na Antiguidade se evocava Baco nas orgias – é a interjeição que mais se ouvia nas ruas do Rio durante o “tríduo momesco” e também aquela com que frequentemente se iniciavam as crônicas do carnaval.
Evoé !… Evoé !… Momo aí vem !
Faltam apenas quatro dias para que o adorado rei da galhofa, o estimado rei da loucura, seja entusiasticamente homenageado por todo o Rio de Janeiro. Vemos já o horizonte esbatido da luz afogueada dos seus mil fachos rubros […]. Folguemos, pois, reine a folia, impere a pândega e domine a galhofa. É carnaval que chega… (Gazeta de Notícias, 1915).
É carnaval que chega, instaurando, ao lado do mundo oficial, aquilo que Mikhail Bakhtin, em seu seminal ensaio sobre A cultura popular na Idade Média e no Renascimento, chamou de um segundo mundo e uma segunda vida do povo. Esta vida festiva, baseada no princípio do riso, representa uma liberação temporária da verdade dominante, da seriedade unilateral, da ordem cristalizada, das relações hierárquicas, transferindo ao plano material e corporal tudo aquilo que é espiritual, ideal e abstrato. Nos folguedos momescos do Rio antigo – nos “dias de deboche ritual”, como diria João do Rio –, a concepção estética da vida é profundamente carnavalesca. Assim como o cômico popular na Idade Média, sua linguagem está
impregnada do lirismo da alternância e da renovação, da consciência da alegre relatividade das verdades e autoridades no poder. Ela caracteriza-se, principalmente, pela lógica original das coisas ‘ao avesso’, ‘ao contrário’, das permutações constantes do alto e do baixo (…). A segunda vida, o segundo mundo da cultura popular constrói-se de certa forma como paródia da vida ordinária, como um ‘mundo ao revés’.
Ainda que enquadrada nos limites da empresa jornalística burguesa, ideologicamente conservadora e motivada por interesses comerciais – “um tráfico de espertos, conduzido por um bando de negociantes iletrados”, no dizer de Luís Edmundo – a crônica da folia expressou, em alguma medida, essa visão carnavalesca do mundo que se encontrava presente na praça pública. Nela, como nas crônicas de François Rabelais, as imagens da “orgia”, do banquete, no seu hiperbolismo positivo, aparecem como a expressão de uma alegria coletiva, universal. Isto é tradicional como festa do povo, superior, enfim, a todas as festanças particulares, confirmam os repórteres boêmios.
Domingo passado houve um grosso bródio no “Viveiro” do Meia Dose, em meio de uma feijoada daquelas de deixar um gajo empanturrado oito dias consecutivos e a gritar por “Nujol” [laxante] em grandes proporções…
Se vocês vissem o que eu vi tapariam o rosto escandalizado. Um “camarada” completamente nu foi metido num barril de chopp, ficando apenas com a cabeça de fora. Perguntei ao Primo de Rivera que “diabo isso era aquilo” e ele me explicou que se tratava do “batizado” do Antonio Augusto Alves, uma das mais competentes figuras da cidade, em matéria de bebestíveis.
(…) Dizia-se ali que o Antonio, hoje “Lord Bis”, era um indivíduo espirituoso e inteligente. (…) Que é espirituoso ninguém o contesta, por isso que, mal amanhece o dia, está ele junto à bomba de chopp. Possui em casa uma instalação especial, ligada diretamente à companhia Brahma, de modo que água não existe ali, mas somente chopp, chopp, chopp e … chopp… De madrugada, abre o chuveiro, a boca aberta e voltada para cima ele ali fica, esquecido de que existe. Se alguém o chama, ele responde meio atrapalhado:
– ‘Stou no banho!… (Diário de Notícias, 1931).
Não havia baile, ensaio ou fundação de bloco que não terminasse em pantagruélica comedoria – as tantas feijoadas, cozidos, canjicas, moquecas, vatapás e carurus dedicados a Momo. Tais “bródios”, associados ao princípio carnavalesco da abundância, constituíam um dos objetos característicos das crônicas foliãs. Veja-se, ainda, como exemplo da representação jornalística do princípio da festa, do banquete, da alegria comunitária e ritual a seguinte croniqueta assinada por Vagalume:
A rapaziada “escovada” do morro do Itapiru, lado do cemitério, organizou o bloco Num Bule com a Nega, com o qual pretendem brincar a valer durante o reinado de Momo. A instalação e diretoria serão organizadas na próxima semana, sendo servida nesta ocasião aos presentes uma piramidal e saborosa moqueca de arraia com manteiga e azeite de dendê (…). A mesa será no sofá rasteiro dos sapateados e a toalha feita do melhor tecido do gramado da redondeza da sede do bloco (Jornal do Brasil, 1920).
Expressando um entusiástico culto a Momo, a crônica carnavalesca tinha uma clara dimensão política, na medida em que o deus/rei da galhofa era tido pelos cronistas foliões como “o único soberano verdadeiramente democrático”. Evoé!
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[Eduardo Granja Coutinho é doutor pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, autor de Velhas histórias, memórias futuras: o sentido da tradição na obra de Paulinho da Viola (EdUERJ, 2002) e Os cronistas de Momo: imprensa e carnaval na Primeira República (Editora UFRJ, 2006)]