Polaco, cigano, judeu, japonês, nego, negão, negona, baiano, caboclo, índio etc. São inumeráveis as referências pejorativas às etnias e às nacionalidades. Às vezes, o nome é composto: alemão-batata, alemão-chucrute; polaco-cabeça-de-vaca. Outras vezes, dizemos que um programa ruim é um “programa de índio”. Quando alguém se atrapalha num serviço, principalmente em São Paulo, é chamado de baiano. No Rio Grande do Sul, baiano é quem monta mal no cavalo. E quem dirige mal ou executa com deficiências uma tarefa é barbeiro. Ofendemos os que nos fazem barba, cabelo e bigode com isso? Ou ofendemos os antigos médicos que praticavam a medicina em domínio conexo com barbas e cabelos nas barbearias, fazendo sangrias?
Na semana passada, Caetano Veloso, entre outros, escreveu sobre o pedido de proibição (ou reeditoração, na edição eletrônica) do verbete “cigano” no dicionário Houaiss, um dos mais consultados do país. Foi triste, pelo menos, o recuo da editora que o publica. Mas deve ter seus motivos para fazer o que fez. Seus lexicógrafos fizeram pouco mais do que recolher aqueles significados dentre os muitos outros que circulam livremente na fala e na escrita. Onde está erro deles?
Reclamação de direito
Fiz o ensino médio num seminário, recluso, porque minha mãe tinha vocação para eu ser padre. Ali as edições eram especiais, isto é, censuradas. Certas palavras e expressões eram substituídas por reticências.
Dou pequeno exemplo: Luís Vaz de Camões, Os Lusíadas. Os deuses brigam em terra, mar e ar, uns favorecendo, outros atrapalhando os portugueses.
A presença de tantos deuses pagãos em toda a narrativa foi perdoada pela censura epocal: era recurso de ornamentação, sem que o autor tivesse a intenção de desmerecer a fé católica, conforme escreveu o parecerista no século 16.
Pois bem. No canto III, temos o episódio de Inês de Castro, “aquela que depois de morta foi rainha”. Foi mesmo: Dom Pedro, após a célebre vingança contra “os brutos matadores de Inês”, pôs o cadáver da amada num trono e fez com que o cortejo percorresse todas as vilas e lugarejos para as cerimônias do beija-mão. Mas as referências ao colo, seios etc. foram pontilhadas de reticências para nós.
No episódio da Ilha dos Amores, os navegadores desembarcam ali, correm atrás das ninfas e, entre arbustos, entregam-se com elas aos prazeres da carne. Mais reticências.
Hoje, quando leio reticências num texto – os famosos e inconclusivos três pontinhos –, fico imaginando o que é que foi suprimido.
Não é apenas no Brasil. Nos EUA, algumas escolas estão fazendo edições especiais deRomeu e Julieta. Estão extirpando pênis, vagina e outras referências sexuais dessa e de outras obras de Shakespeare e de outros autores clássicos.
No Brasil, a pauta da semana passada tratou em muitos jornais, revistas e outras mídias de um procurador da Justiça Federal de Minas Gerais que tentou proibir o dicionário Houaiss porque um leitor reclamou que no verbete “cigano” aparecem definições preconceituosas.
Vou reclamar também! No verbete dionisíaco, do mesmo étimo do meu nome, sou definido como tumultuário, desordenado, confuso. Sem contar que Baco, seu outro nome, é um deus bêbado e tarado.
Perigo da censura
Na Espanha, a gente pede “judías” no cardápio. E ninguém pensou em censurar os restaurantes. Todos entendem o contexto.
E a “massa à putanesca”, prato que surgiu justamente para alimentar aquelas senhoras que, quase ao alvorecer, voltavam do trabalho que faziam à noite nas bordas das cidades, isto é, nos bordéis – vão tirar esse prato dos cardápios e dos dicionários?
Na culinária brasileira temos o “bife à Camões”: um ovo frito, posto numa das pontas de um naco de carne. Estranha homenagem. É que o poeta era cego de um olho. Vem mais censura aí! Os politicamente corretos, aliás, usam inadequadamente a expressão “portador de deficiência”. Ninguém porta uma deficiência. Você é portador de um documento, de um chapéu, de um sobretudo, de uma pasta, de bagagem etc., mas não de um defeito de nascença ou produzido por acidente de trabalho, de trânsito etc.
A palavra deficiente está na língua portuguesa desde os finais do século 16. Diz o Aurélio no verbete “Deficiente”:
“[Do lat. deficiente.] Adjetivo de dois gêneros. 1. Em que há deficiência; falho, imperfeito: informações deficientes. ~ V. número —. Substantivo de dois gêneros. 2. Pessoa que apresenta deficiência física ou psíquica.”
E o Houaiss:
“Adjetivo de dois gêneros. 1. que tem alguma deficiência; falho, falto. Ex.: funcionamento d. 2. que não é suficiente sob o ponto de vista quantitativo; deficitário, incompleto. Ex.: dados estatísticos d. 3. Rubrica: aritmética. Que é menor do que a soma de seus divisores próprios (diz-se de número) Obs.: cf. número deficiente ; p.opos. a abundante. Substantivo de dois gêneros. Rubrica: medicina, psiquiatria. 4. Aquele que sofre ou é portador de algum tipo de deficiência.”
E agora, como ficamos? Aleijadinho, o maior artista brasileiro do ciclo do ouro, justamente em Minas Gerais, onde ora procura o procurador censor, doravante terá seu verbete modificado para “portador de deficiência”, senão é preconceito? Os cardápios, cujos autores quiseram homenagear Camões (em expressão sinistra, é verdade, mas a efígie mais célebre apresenta o autor com um olho apenas, e como houve defeito de impressão, em algumas edições ele é cego do olho direito; em outras, do olho esquerdo)?
Valha-nos, Deus! Essas coisas, sabemos como começam, começam sempre do mesmo jeito, mas não sabemos como terminam. É aí que mora o perigo.
Daqui a pouco os retrógrados pegam alguém de grande popularidade e a personalidade vai à mídia defender a censura aos livros que ele e seus asseclas nunca leram e jamais consultaram. Pior. Vão pedir a condenação dos autores.
Mas para quem nunca leu um livro, todos eles estão previamente e para sempre censurados.
Interessante que “nois pega o peixe”, pode; dar às coisas os nomes que elas têm, não.
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[Deonísio da Silva é doutor em Letras pela USP e vice-reitor da Universidade Estácio de Sá; autor de 34 livros, o mais recente é o romance Lotte & Zweig]