Ou botaram alguma coisa na água do bebedor do MPF (Ministério Público Federal) de Belo Horizonte ou o parquet não sabe para que serve um dicionário. É despropositada a ação civil pública que o MPF ajuizou pedindo a retirada de circulação do dicionário “Houaiss” porque a obra contém “expressões pejorativas e preconceituosas” contra os ciganos. Entre as múltiplas definições para a palavra, constam “aquele que trapaceia, velhaco, burlador” e “agiota, sovina”. Evidentemente, o “Houaiss” marca esses usos como pejorativos.
Não cabe ao lexicógrafo dar lições de moral ou depurar o idioma das injustiças sociais que ele carrega, mas tão somente registrar as acepções presentes e passadas dos vocábulos. Se deixa de fazê-lo, a obra torna-se inútil. Por isonomia, o MPF deveria também mandar recolher todos os dicionários que trazem, por exemplo, o termo “beócio”. Para essa palavra, o “Aurélio” registra: “curto de inteligência; ignorante, boçal”. Se olharmos para a etimologia, descobriremos que estamos diante de um imemorial preconceito dos atenienses, para os quais os habitantes da Beócia não passavam de camponeses estúpidos.
Caráter histórico
Na mesma linha vão “capadócio” (natural da Capadócia, mas também ignorante, trapaceiro, canalha), “filisteu” (antigo habitante da Palestina e pessoa inculta, vulgar), “vândalo” (membro de uma tribo germânica e destruidor), além de “lapônio”, “ladino”, “safardana”, "maltês”. Também carregam alguma dose de intolerância termos como “judiar” (agir como judeu e maltratar), “cretino” (quem padece de hipotireoidismo), “escravo” (que vem de eslavo).
No fundo, línguas são verdadeiros catálogos de preconceitos, às vezes nem originais, mas herdados de outros povos. Com o passar do tempo, já nem os reconhecemos como tal, mas as palavras em que resultaram enriquecem e dão caráter histórico ao idioma. Privar a língua dessa dinâmica é torná-la uma língua morta.
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[Hélio Schwartsman, da Folha de S.Paulo]