Olhei no espelho e vi, refletida ao meu lado, a imagem suarenta de David Remnick, que levantava pesos. A iluminação fluorescente, nada lisonjeira, não poupa nem o empertigado editor-chefe da New Yorker e prêmio Pulitzer por “O Túmulo de Lenin”. Numa outra manhã, à minha esquerda, o editor chefe da Time, Richard Stengel, e coautor de biografia de Nelson Mandela (com o próprio), cantarolava na esteira ao som do seu iPod. Em outra ocasião, esperei, paciente, o antigo editor da Newsweek, Fareed Zakharia, hoje colunista da Time e âncora da CNN, vagar a máquina de extensão dos músculos da perna.
Já notei que um robusto colunista da revista Vanity Fair demonstra preferência pelos músculos dos ombros. Uma romancista favorita tenta, em vão, baixar seu considerável ganho de peso na mesma academia. Faço questão de não usar o chuveiro ao mesmo tempo que ela, para não provocar constrangimento, no caso de a escritora me reconhecer de uma antiga gravação de TV. Quem gostaria de dar de cara, pelada, com sua entrevistadora? Eu desviava os olhos quando me deparava, na porta do vestiário, com o estimado ator e roteirista de cinema discutindo pelo celular – seu casamento estava em crise, dizia um tabloide local.
A não ser pelo alto nível da escrita de seus frequentadores, o que a coloca num patamar literário acima de certas academias fundadas para celebrar a musculatura cerebral, esta nos oferece o mesmo baticum eletrônico insuportável e o sorriso insincero de seus funcionários. Para ser aceito na minha academia, não é preciso fingir ser literato ou contar com a complacência de seus futuros pares, mas é preciso pagar R$ 260 por mês.
Não ficção fundamental
Suando e bufando para justificar minha retórica sobre a vida saudável, às vezes imagino detectar um novo vigor na minha profissão por testemunhar, no anonimato, tantos corpos de mentes letradas a fazer flexões e escaladas no Stair Master. Mas, não, deve ser a euforia fugaz das endorfinas. A amostra demográfica da minha academia é fruto de pura coincidência geográfica.
Aqui, na costa central da Califórnia, de onde escrevo, um jornalista local influente é quase um oximoro. O magro diário da cidade é parte da Tribune Company, dona do decadente Los Angeles Times e do Chicago Tribune. Na semana passada, ficamos sabendo que, depois de declarar falência sob o comando do controvertido bilionário Sam Zell, a Tribune gastou mais dinheiro com advogados e assessores – US$ 233 milhões – do que reorganizando seus jornais e estações de TV, cenários de incontáveis demissões nos últimos cinco anos.
Apesar de ser vizinha a um renomado campus do sistema universitário estadual da Califórnia, sediar uma orquestra sinfônica e um festival de cinema decente, a pitoresca San Luis Obispo, batizada por Oprah Winfrey como “o lugar mais feliz dos Estados Unidos”, não tem o que celebrar em matéria de mídia jornalística. Aproveitei uns ingressos de cortesia para frequentar a maior academia de ginástica da cidade e vi outra amostra demográfica – a que representa a famosa preocupação dos californianos com o corpo e a juventude. Todas as esteiras eram voltadas para o espelho, de costas para a vista espetacular das montanhas.
Minha anfitriã em San Luis Obispo faz nove anos no mês que vem. Ela lê ficção com uma voracidade impressionante. Sua linguagem mistura gíria aprendida na escola com frases articuladas, de construção tão complexa que a imaginei tomando um milk-shake com Harold Bloom. Uma pena que, ao contrário da minha geração, ela não vai crescer lendo a não ficção fundamental que vem do jornalismo experiente. Em compensação, do jeito que ela já escreve, não demora muito, pode ser aceita na academia. Não a de musculação.
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[Lúcia Guimarães é jornalista, em Nova York]