“…esquecer tudo quanto fosse necessário esquecer, trazê-lo à memória prontamente no momento preciso, e depois torná-lo a esquecer; e acima de tudo, aplicar o próprio processo ao processo”
Esse é um trecho da definição que George Orwell deu à expressão “duplipensar”, que ele mesmo inventou e usou em seu clássico 1984. onde descreve uma hipotética sociedade dominada pelo totalitarismo. O duplipensar é uma moda recorrente e bastante ativa no universo da militância política que hoje preenche as redes sociais, e alterna a sadia vontade de participar, opinar e debater com a mais vulgar e corrosiva plantação de grosserias que se tem notícia na história do embate político brasileiro dos tempos recentes.
A empreitada do jornalista e ciberativista australiano Julian Assange, que criou um site chamado WikiLeaks destinado a vazar documentos diplomáticos secretos, despertou, num primeiro momento, uma corrente mundial de simpatia e foi endossado por uma rede de organizações noticiosas de tradição e respeito. Jornais de primeira linha começaram a publicar documentos com revelações mais ou menos bombásticas, até que a novidade se exaurisse em si mesma e a repetição de revelações inócuas ou duvidosas começassem a cansar os jornais e seus leitores.
No Brasil, onde cautela e caldo de galinha são menos apreciados do que deveriam, Assange, apesar de todo seu currículo de aventureiro e de uma folha corrida no mínimo duvidosa, foi logo endossado por uma certa esquerda que adora cultivar teorias conspiratórias e ganhou status de grão mestre do jornalismo mundial. WikiLeaks se tornou quase categoria de pensamento. Seu prestígio foi crescendo à medida em que os documentos divulgados,na maioria das vezes a seco, sem a devida contextualização ou a necessária edição, favoreciam as teses que povoavam, desde tempos imemoriais, a algibeira e o imaginário político de certas esquerdas e ajudavam a fermentar o anti-americanismo mais primário.
A banda de música e o silêncio
A tal ponto que WikiLeaks e Assange ganharam um elogio inaudito, de viva voz e ad hominem, dele mesmo, Lula, o Rei Sol, quando no exercício do cargo de presidente. Para ele, Assange representava a própria liberdade de expressão. Os telegramas do WikiLeaks eram replicados com entusiasmo e com barulho de fanfarra nas redes sociais. Eles revelavam, entre outras enormidades, que o jornalista William Waack era espião da CIA e que o candidato à presidência José Serra tinha prometido que, vencendo a eleição, “entregaria” o pré-sal à multinacional Chevron.
Esta semana, depois de um recesso mais ou menos prolongado, o WikiLeaks volta aos jornais, revelando a conversa entre um consultor da empresa de inteligência e análise estratégica Stratford e um funcionário do governo norte-americano no Brasil, que diz: “A compra de submarinos é tão sem sentido que só pode ter a ver com propina. Lula provavelmente está cuidando do seu plano de aposentadoria. E veja só: a compra acontece ‘curiosamente’ no fim de seu mandato.”
O duplipensar, que produzia tanto barulho com idiotices semelhantes, desta vez se calou. Silêncio eloquente.
O lixo do WikiLeaks continua sendo lixo. A diferença entre a banda de música e o silêncio é o lado onde cai o lixo.
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[Sandro Vaia é jornalista, autor do livro A Ilha Roubada (Editora Barcarolla), sobre a blogueira cubana Yoani Sanchez]