Ocidadão José Serra – aquele que havia dito que não disputaria mais eleições – anunciou com pompa, circunstância e ampla cobertura favorável dos principais telejornais que será candidato a prefeito de São Paulo. Nenhum telejornalista lhe fez qualquer pergunta constrangedora sobre as graves denúncias feitas no livro A privataria tucana pelo jornalista Amaury Ribeiro Jr. Os telejornalistas presumem que a candidatura de Serra é notícia. As denúncias que pesam contra ele não são notícia, não interessam aos eleitores, não podem ser objeto de questionamento jornalístico?
A imprensa brasileira é sempre pródiga em atacar Hugo Chávez porque ele parece querer ficar no poder até morrer. Mas não ocorreu a nenhum telejornalista questionar Serra acerca de sua atitude semelhante. O eterno candidato tucano já está na política há mais tempo que Chávez. Serra já foi secretário de Estado, deputado federal (dois mandatos), senador, ministro, prefeito e governador. A mesma imprensa que condena as aspirações quase monárquicas de Hugo Chávez na Venezuela encoraja o insaciável apetite de poder de José Serra no Brasil. O desejo de vitaliciedade no poder é pior num país distante ou aqui mesmo?
Ao aparecer em público, Serra foi pródigo em sorrisos e gestos largos. Um verdadeiro aristocrata. Nenhuma frase mal construída, nenhuma palavra dura, nenhum comentário grosseiro. O pré-candidato tucano foi de uma educação impecável. Deve ter impressionado tanto os telejornalistas que todos esqueceram que há bem pouco tempo Serra foi acusado de ligar para redações de jornais pedindo a cabeça de jornalistas que tinham feito algum tipo de crítica à sua administração. Francamente, não consigo entender esta falta de memória jornalística. Quando é que algum telejornalista vai obrigar Serra a assumir publicamente o que ele fez em sigilo no seu gabinete?
Poder na mídia televisada
O Serra que se apresentou na TV como pré-candidato a prefeito de São Paulo é um homem bem diferente daquele Serra que encerrou sua amarga derrota diante das câmeras de TV instigando seus partidários a questionar o resultado nas ruas. Nos primórdios da República romana, um cidadão que ousou conspirar para chegar ao poder sem os votos dos comícios foi publicamente desmascarado. Spurio Mélio caiu em desgraça e seu nome deu origem ao vocábulo que os telejornalistas parecem ser incapazes de usar para designar as pretensões de José Serra naquela oportunidade. A memória seletiva da imprensa quando se trata de José Serra é ou não anti-democrática e espúria?
Democracia é disputa e renovação. Mas os telejornais parecem querer transformar José Serra numa unanimidade indiscutível. A linha limítrofe entre propaganda e telejornalismo foi claramente violada durante a aparição do novo eterno candidato a prefeito de São Paulo do PSDB. Fazer propaganda para um candidato antes da eleição é grave violação da legislação eleitoral. Quando é que o MP vai tomar providências para normalizar o telejornalismo de maneira a impedir propaganda em favor de Serra? Quando é que o candidato tucano será punido pelo fato de abusar de seu poder para criar um ambiente jornalístico absolutamente favorável?
Qualquer que seja a origem do incrível poder que Serra tem na mídia televisada, devemos admitir que o mesmo não é republicano, pois ele ainda não foi eleito pelo povo ou empossado pela Justiça eleitoral. Quem são estes Spúrios Mélios que comandam os telejornais em favor de Serra ou junto com ele conspiram contra a renovação da democracia brasileira?
Telejornais como loja de departamentos
Serra não é apenas o novo eterno candidato a prefeito de São Paulo. Ele é um produto da mídia. Quando o vi nos telejornais esta semana lembrei imediatamente das palavras de Giului Carlo Argan sobre o design:
“Não é um fator de nivelamento, mas de agregação social. Cria uma solidariedade entre quem pratica as mesmas tipologias de objetos auxiliares. Adere à ritualidade geral da vida cotidiana, mas seu espaço vital, a paisagem em que naturalmente se insere e para a qual é feito, antes mesmo da casa, do escritório ou da rua, é a loja de departamentos. É este o verdadeiro foro da cidade contemporânea. É uma paisagem sem horizontes, inteiramente feita de coisas concretas que a indústria produziu e embrulhou em invólucros brilhantes ou coloridos em tons fortes e, finalmente, amontoou em série (pequenas séries) em prateleiras repletas e em ambientes apinhados e violentamente iluminados. Cada objeto emite a sua atração visual, com freqüência harmonizada por um fundo sonoro vagamente inebriante, como a música de órgão que acompanha as funções religiosas. À atração visual dos objetos corresponde a mão estendida do usuário, que pega o objeto da prateleira como colheria uma fruta madura da árvore. A ritualidade do consumo é um fato social demasiado importante para ser perturbado por preocupações…”(História da arte como história da cidade, Martins Fontes, 2010).
Durante a coletiva de Serra à imprensa ele se comportou como se fosse um objeto eleitoral brilhante a ser consumido irrefletidamente pelos eleitores. Considerando-se a sede insaciável de poder do tucano, dele não poderíamos esperar muito mais que isto. Mas dos telejornalistas, creio que poderíamos esperar que eles agissem como telejornalistas. Não foi isto o que ocorreu. Os telejornais que veicularam a entrevista coletiva de Serra se comportaram mais como uma loja de departamentos do que como veículos de comunicação pautados pelo interesse público. Esta perigosa sovietização ou nazificação da imprensa televisiva em favor de José Serra é intolerável.
***
[Fábio de Oliveira Ribeiro é advogado, Osasco, SP]