A cidade que se notabilizou nacionalmente pela ideia de homenagear em praça pública o mentor da última ditadura brasileira, o general Golbery do Couto e Silva, volta aos holofotes (ver, neste Observatório, "Benfeitor em Rio Grande, malfeitor no Brasil"). Rio Grande, no extremo sul do Rio Grande do Sul, tem vivido dias de tensão. Em 15 de fevereiro último, a Câmara Municipal instaurou uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar o caótico transporte público da cidade, um velho problema que atinge – diretamente – pelo menos 40% de seus 190 mil habitantes.
Há mais de 30 anos o transporte coletivo é tema de controvérsias em Rio Grande. Dividido entre duas empresas – uma local e outra ligada ao grupo paulista Benfica –, o translado de pessoas em ônibus é matéria sobre a qual pairam dúvidas das mais diversas. Em xeque, por exemplo, está a lisura dos processos licitatórios de concessão do serviço – sempre vencidos pelo mesmo grupo, sem concorrência – o último deles abertamente contestado por recente relatório do Tribunal de Contas do Estado. Contestam-se, ainda, a qualidade (notoriamente baixa), o desrespeito ao usuário e o “Sistema Integração”, uma remodelação implantada a fórceps pela prefeitura de Rio Grande em 2010, na tentativa desesperada (que não funcionou) de amenizar o caos do transporte coletivo no município.
A CPI instaurada no mês passado tem por intuito estudar estes e outros problemas – entre eles, o exorbitante preço das tarifas cobradas pelo serviço (R$ 2,60, valor mais alto que o de muitas das capitais brasileiras). A Comissão foi criada depois de quase dois meses de discussões e entraves, provocados, sobretudo, por parte de oito dos treze vereadores da Câmara que parecem pouco interessados na investigação. No dia 15 de fevereiro, durante a escolha dos membros responsáveis pela averiguação, foram escolhidos cinco edis (de um total de oito) que sempre demonstraram clara resistência ao processo investigativo. A presidência da CPI, a vice e a relatoria foram ocupadas por este grupo, restando aos três vereadores da oposição a árdua tarefa de enfrentar a mesa diretora.
23 segundos de espaço para a CPI
Apesar da resistência e, diferente do que se poderia imaginar a priori, os trabalhos da CPI (ainda inconclusos) conseguiram revelar pelo menos alguns detalhes até então desconhecidos do intrincado processo que envolve a Prefeitura Municipal, o consórcio concessionário do transporte coletivo e a população rio-grandina. Os três vereadores mais vigilantes nas investigações – Augusto Cesar de Oliveira (PDT), Júlio Martins (PCdoB) e Luiz Spottorno (PT) – apresentaram documentos e pedidos de apuração inesperados pela bancada situacionista, fazendo com que o confronto político criasse um carregado clima de troca de acusações. O ápice dos conflitos aconteceu quando um relatório insinuando dívidas de uma das empresas envolvidas com o ISSQN foi apresentado para investigação, sendo inicialmente negado pela relatoria da CPI.
Além disso, pouco afeitos a dar satisfações de seus atos, os vereadores de Rio Grande estão tendo de enfrentar um fato novo para a cidade: a quebra do monopólio da difusão de informações. Restrita, basicamente, a cinco emissoras de rádio, uma de televisão e apenas um jornal diário – quase todos simpatizantes e/ou omissos em relação à política local –, vereadores e prefeito da cidade acostumaram-se à postura acomodada dos meios, um privilégio que, durante os últimos anos, os privou de quase todo tipo de crítica mais feroz.
No entanto, a proliferação das chamadas redes sociais e dos blogs, verdadeiras ferramentas de democratização da informação, tem mudado este cenário. Desde antes da implantação da CPI dos transportes, internautas já difundiam informações – muitas delas “de bastidores” – a respeito das manobras políticas visando manipular o processo. Instaurada a Comissão, cidadãos preocupados com os rumos da política local montaram verdadeiras redes de cobertura sobre o tema, ouvindo e registrando in loco os debates na Câmara, acompanhando a cobertura da televisão exclusiva do Legislativo e buscando apurar dados disseminados durante as discussões. Um trabalho bem diferente daquele que não vem sendo desempenhado pelos meios de comunicação que deveriam se dedicar ao assunto.
Para que se tenha uma ideia, a RBS TV local – emissora afiliada à Rede Globo – reservou míseros 23 segundos de seu espaço sobre a CPI. Aconteceu em 17 de outubro, dois dias depois do início dos trabalhos. Desde então, os cerca de sete minutos diários de programação produzida em Rio Grande foram ocupados por pautas das mais diversas – Carnaval, concursos de beleza, festividades católicas etc. Sobre a CPI, nada.
“Isso é democracia”
Na mídia impressa, um quadro pouco menos desolador. O diário Agora (de 16 páginas) cobre as investigações em quase todas suas as edições, apesar de manter o tom burocrático e tímido que lhe caracteriza. Sua postura em relação à CPI, mesmo assim, parece minimamente honesta: em um editorial publicado em 31 de janeiro, o jornal se declarou a favor das investigações.
Mesmo assim, é através da internet que as notícias mais polêmicas e escabrosas têm se disseminado. Através da rede Facebook e, principalmente, de blogs mantidos por cidadãos comuns, a população tem conseguido furar a cortina de fumaça criada pela Câmara. Certamente por isso, no início desta semana, o vereador Wilson Batista Duarte da Silva, o “Kanelão” (PMDB), convocou os assessores parlamentares do Legislativo para anunciar uma norma interna que reporta a tempos nada saudosos: de agora em diante, o funcionário que publicar fotos ou notícias da Câmara na internet será exonerado de seu cargo.
Em outras palavras, os assessores parlamentares da Câmara Municipal de Rio Grande estão censurados, proibidos de exercer o direito constitucional da liberdade de expressão. O argumento de “Kanelão”, que fere um dos incisos do Artigo 5º da Constituição brasileira, é de que a imagem do Legislativo rio-grandino precisa ser preservada. De acordo com o vereador, a foto de edis na companhia de um dos depoentes da CPI dos transportes teria sido publicada por assessores da Câmara Municipal, gerando constrangimentos aos envolvidos. O vereador Julio Martins, contrário à decisão do atual presidente da Câmara, foi taxativo ao condenar seu colega: “Isso é democracia. Alguns vereadores ainda não estão atualizados.”
O desespero do vereador
E não estão mesmo. Em 2005, o mesmo vereador “Kanelão” (há cerca de vinte anos dono de uma das cadeiras do Legislativo de Rio Grande) processou o jornal Agora por sentir-se ofendido com uma charge do cartunista Wagner Passos, sobre denúncias de nepotismo. O processo transitou em todas as instâncias e o vereador saiu delas sempre derrotado. No dia 25 de fevereiro, o Superior Tribunal de Justiça encerrou a ação, acabando com a tentativa de “Kanelão” de intimidar a imprensa local.
Pelo que se vê agora, o edil aprendeu pouco com a lição. Sua tentativa de proibir assessores parlamentares de exercerem o livre direito da expressão, além de sórdida, atenta contra as leis do país. Por saberem disso, alguns dos assessores de vereadores de Rio Grande não têm levado a normativa interna (e autoritária) a sério. Eles e até mesmo alguns dos vereadores – que correm ainda menos riscos de exoneração – continuam publicando conteúdo referente ao Legislativo, para desespero de “Kanelão” e de todos os que preferem o silêncio dos justos.
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[Chico Cougo é historiador e autor do blog Memórias do Chico]