Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Fundação Padre Anchieta, o destino

Criada há 45 anos, a Fundação Padre Anchieta – rede paulista de rádio e televisão – integra-se à História do estado de São Paulo pelas relevantes contribuições que oferece à sociedade, como educadora e veículo de difusão cultural, das artes e da música. Foi por meio da Lei nº 9.849, de 26 de setembro de 1967, que o governo do estado obteve autorização para instituir fundação destinada a atuar nas esferas da educação e cultura. A escritura pública de constituição foi lavrada no 19º Tabelionato da capital, tendo sido registrada no 4º Tabelião de Títulos e Documentos.

A iniciativa partira do governador Roberto de Abreu Sodré, que, logo após assumir a chefia da administração estadual, em março de 1967, deixou assentado, em mensagem à Assembleia Legislativa, que a fundação teria vida livre de ingerência do seu e de futuros governos, de deputados e de partidos políticos. O jornal O Estado de S. Paulo, na edição de 22 de agosto de 1968, noticiava na primeira página: “Uma nova televisão está nascendo”. Não, porém, para dar aulas pelos métodos convencionais, dizia o texto de Allen Augusto Dupré, mas com a utilização de modernas técnicas de comunicação audiovisual.

O artigo 1º dos Estatutos Sociais consigna tratar-se de pessoa jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, com autonomia jurídica, administrativa e financeira e na gestão dos respectivos bens e recursos. O artigo 2º situa dentro das suas finalidades a defesa e o aprimoramento da pessoa humana, notadamente da criança e do adolescente, e sua formação crítica, para o exercício da cidadania. O artigo 5º veda o uso, sob qualquer forma, da rádio e da televisão educativas, bem como de quaisquer outros meios de comunicação e multimídia, para fins político-partidários, propagação de ideias ou fatos que incentivem recurso à violência, preconceitos de raça, classe ou religião, e publicidade comercial.

Pessoa jurídica ou fundação pública?

Foi o primeiro presidente da diretoria executiva o dr. José Bonifácio Coutinho Nogueira. E o Conselho Curador – integrado por 35 representantes da sociedade civil, eleitos a cada três anos – tinha na presidência o professor Antonio Barros de Ulhôa Cintra. Frise-se que, à época em que foi criada, o país encontrava-se debaixo de regime autoritário, tendo como presidente da República o general Arthur da Costa e Silva, que sucedera ao general Humberto de Alencar Castelo Branco e seria sucedido pelo general Emílio Garrastazu Médici. Naquelas circunstâncias, seria fácil para o governador Sodré imprimir à entidade outro perfil, na forma, por exemplo, de autarquia relacionada à Secretaria da Educação. Não o fez porque, conforme ficou assinalado nos estatutos, se cuidava de preservá-la de futuros governos, os quais, possivelmente, não vacilariam em tentar transformá-la em instrumento dócil de propaganda político-partidária.

Este preâmbulo é necessário porque, como o povo tem memória curta, poucos hoje teriam conhecimento das origens da Fundação Padre Anchieta e do momento histórico em que ela se consolidou. Como pessoa de direito privado, administrada por diretoria independente, a fundação conseguiu superar períodos tormentosos, como na morte de Vladimir Herzog, ou na malograda tentativa de intervenção do então governador José Maria Marin, nos anos 1980, barrada pelo Tribunal de Justiça, para desempenhar relevante papel na defesa do restabelecimento do Estado de Direito democrático. Pelo programa Roda Viva passaram políticos da situação e da oposição, jornalistas, escritores, artistas, esportistas. Desde o primeiro momento, o programa consagrou-se como canal de comunicação nacional, com a abertura de debates, em clima de liberdade, em torno de temas relevantes, como o restabelecimento de eleições diretas de governadores e do presidente da República.

Decorridos mais de 25 anos de regime democrático, a Fundação Padre Anchieta enfrenta hoje desafio decorrente de corrosiva crise de identidade. Afinal, trata-se de pessoa jurídica de direito privado, como foi determinado em lei, na escritura pública e nos estatutos, ou corre o risco de ser transformada em fundação pública, por sentença judicial? Como no dilema shakespeariano, ser ou não ser, eis a questão!

Patrimônio dos paulistas

O tema não é banal ou acadêmico. A fundação encontra-se, neste exato momento, na expectativa de julgamentos em processos que tramitam na Justiça do Trabalho e no Supremo Tribunal Federal, um dos quais instaurado pelo Ministério Público do Trabalho. Serão de tal ordem, e de tão funestas consequências, as transformações decorrentes da alteração de natureza jurídica que não excluo a ideia do colapso da Fundação Padre Anchieta no caso de julgamento irrecorrível vir a lhe impor mudança da órbita privada para a esfera pública, na qual definhará e acabará estrangulada.

Alega-se que a fundação se beneficia de recursos públicos proporcionados pelo estado de São Paulo. O argumento é pueril. Compete ao governo, independentemente de quem se encontrar à frente dele, amparar a educação e a cultura. Partidos políticos são pesadamente subvencionados pelo Fundo Especial de Assistência Financeira (o chamado Fundo Partidário), conforme a Lei nº 9.096, de 19 de setembro de 1995. Ninguém, entretanto, cogitaria de convertê-los de pessoas jurídicas de direito privado em pessoas de direito público, ao lado, por exemplo, das autarquias.

A Fundação Padre Anchieta é patrimônio dos paulistas. Deve ser preservada com o perfil que lhe atribuíram os fundadores. Somente assim estará em condições de exercer, sem interferências e sem censura, a missão educativa e cultural que a distingue das demais emissoras e nos causa orgulho.

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[Advogado, foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho]