Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Sobre imprensa ontem e hoje

Uma pequena história talvez exemplar. No início de 1965, um jovem repórter impelido pelos ventos do então recente golpe militar consegue dirigir-se ao importante editor de um grande jornal no Rio de Janeiro. Na mão, uma carta de apresentação escrita pelo correspondente daquele jornal em seu estado, em que dava conta das virtudes linguísticas e redacionais do jovem. O editor mostrou-se vagamente pessimista quanto às possibilidades e franco: havia, sim, um lugar na redação, mas para alguém que de fato falasse mais de uma língua estrangeira e, ainda por cima, tivesse concluído um curso universitário. “É o meu caso”, respondeu-lhe o repórter. Foi testado e, sem maiores delongas, contratado.

Este é um flagrante de uma história de vida. Acreditamos, porém, que ninguém melhor do que um jornalista de boa cepa (ou um bom leitor de textos jornalísticos) para compreender a força comunicativa de uma narrativa, ainda que resumida ou parcelar.Claro, existem resistências teóricas à palavra “narrativa” fora do contexto especificamente literário. Tanto que alguns preferem ater-se ao termo caso como uma forma de elaborar narrativamente um movimento que se apresenta como evento individual ou microssocial: algo aconteceu, algo mudou o seu estado, e o caso se configura.

Água no moinho

O fato é que, seja na ficção literária ou na vida quotidiana (onde se insere o jornalismo), a narração de uma pequena história tem um espectro tão amplo de funções que pode acolher até mesmo a argumentação, sem que, entretanto, disponha em sua estrutura interna dos elementos do discurso argumentativo. É grande, nas ciências sociais, a cumplicidade com a narrativa. Desde as últimas décadas do século 19, ela comparece como método, por meio das “histórias de vida”, na psicologia, na psicanálise, na sociologia e na antropologia. Ao longo do século 20, foram vários os antropólogos que se valeram desse recurso para mais se aproximar do discurso oriundo das realidades diferentes por eles estudadas.

Toda essa digressão serve aqui para enfatizar a importância cognitiva dessa matéria-prima (com valor agregado) da atividade jornalística, que se perde de vista aos poucos no frenesi textual da rede eletrônica, onde o valor do acontecimento é ultrapassado pela veloz percepção fragmentária da vida. Nas formas de vida emergentes, as relações sociais e de produção do saber são constituídas por seres humanos e máquinas, em parceria cada vez mais igualitária. A interobjetividade (o relacionamento entre objetos) tem hoje peso tão grande, senão maior, quanto o da intersubjetividade.

É uma perspectiva que se amplia quando se considera que a arquitetura inteligente das novíssimas gerações de servidores computacionais (sensores inteligentes que possibilitam o monitoramento online e ininterrupto das máquinas) reduz enormemente a necessidade de mão de obra humana na operação e manutenção das máquinas. E a prevalência das máquinas, concomitante ao aparecimento de objetos técnicos como o “robô sensível” (capaz de visão, audição e tato), joga água no moinho da hipótese de que a tecnologia passe a ser considerada, em si mesma, como um “ator” social em atuação ininterrupta nos variados processos de existência.

Primeiro emprego

Nada de apocalíptico nessa realidade que se desenha, já que tudo é criação dos homens e se espera que termine integrado à dimensão humana. A nossa questão aqui, agora, é a de uma pequena dúvida quanto à persistência do jornalismo nessa nova urbs ou, pelo menos, do jornalismo como o definíamos e praticávamos. Por exemplo, nessas relações sociais de intensa “interobjetividade”, seria possível o recrutamento de um repórter por sua própria capacidade intelectual de trabalho, em vez do corporativismo neopatrimonialista que acentua as relações pessoais e os reflexos do espelho midiático? Ou, então, ainda importa mesmo o repórter do fato social? Existiria ainda aquele editor antenado com o potencial do outro?

Talvez questões desta ordem não façam mais sentido na realidade corporativa da mídia atual. Mas de algum modo elas surgem aqui como decorrência da pequena história narrada no início deste texto. Eu era o jovem repórter saído às pressas da Bahia, o órgão de imprensa era o Jornal do Brasil (de saudosa memória) e o editor chamava-se Alberto Dines, cujos 80 anos de idade festejamos agora. Devo-lhe meu primeiro emprego no Rio, mas o jornalismo brasileiro lhe deve muito mais.

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[Muniz Sodré é jornalista e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro]