Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Vuvuzelas para o presidente

Na quinta-feira (8/3), foi exibido o penúltimo capítulo de uma novela política até hoje sem precedentes, quando se trata do cargo de presidente de uma região da República alemã. Christian Wulff renunciara no dia 17 de fevereiro passado depois de meses ininterruptos de acusações de uso de privilégios e por aceitar favores de amigos influentes, podendo assim se tornar subornável em sua função de ministro-presidente da região da Baixa Saxônia.

Além de ser a quarta força no poder, o jornalismo investigativo é ímpar neste país e instrumento-chave poderosíssimo. Sem falar nas fontes, que vão até o interior do palácio presidencial, Bellevue. Na festa de confraternização com funcionários do palácio, Wulff, em tom de deboche, disse: “Daqui a um ano, ninguém mais fala nesse assunto”. No dia seguinte, a frase foi manchete de jornal.

O pontapé inicial do que a imprensa chama “Caso Wulff” foi dado em dezembro passado, quando o ex-presidente se encontrava em viagem oficial aos países do Golfo Pérsico. Ali mesmo ele recebeu a notícia de que a imprensa estaria prestes a publicar a reportagem sobre o empréstimo de 500 mil euros concedidos a ele pelo casal amigo Geerkens, ou melhor, pela sra. Geerkens, esposa de um joalheiro milionário. Na esperança de retorno à normalidade e de tirar o foco de sua pessoa na mídia, o primeiro passo de Wulff foi demitir Olaf Glaeseker, seu assessor de imprensa e braço-direito durante anos.

Não funcionou. Diariamente a imprensa divulgava novos casos. Entre o Natal e o Ano Novo, ou seja, quando as primeiras denúncias já haviam sido publicadas, descobriu-se que o empréstimo da sra. Geerkens teria sido trocado por um empréstimo bancário com excelentes percentuais de juros. Logo depois descobriu-se que esse contrato que ratificava o empréstimo bancário somente teria sido assinado entre o Natal e o réveillon, ou seja, quando Wulff exercia o cargo de presidente. Em nenhum momento ele informou a imprensa sobre essa troca.

A influência do tabloide

Fato jornalístico inusitado é que aquilo que depois se tornou um tsunami político teve início por onde ninguém contava, muito menos o próprio Wulff: o jornal tabloide Bild, cujo redator-chefe, Kai Diekmann, é nome certo na lista de convidados das festas de confraternização na Chancelaria federal e sempre o primeiro a receber informações exclusivas quanto se trata de assuntos do governo ou da vida pessoal de parlamentares.

Wulff foi literalmente convocado para esse cargo por razões político-partidárias da chanceler Angela Merkel, que com ele poderia estar certa de suporte político, já que o trabalho com a coligação composta pela União Democrática Cristã (CDU), União Social Cristã (CSU, Baviera) e Liberais (FDP) teve um começo infeliz, cheio de atribulações e tropeços e, como consequência, aguda perda de credibilidade junto aos eleitores. Merkel pretendia compensar esse efeito com um presidente sem nota pessoal própria, adequado para o papel de coadjuvante no xadrez político da chanceler. Já na votação, Wulff teve que comparecer a três turnos para se ver finalmente eleito. Na época, a resistência à sua candidatura ir muito além somente dos bancos da oposição.

Kai Diekmann (do Bild) e Christian Wulff eram unha e carne, alianças comuns entre a classe política e alguns setores da mídia. A filosofia da vitamina B e “uma mão lava a outra” também se encontra aqui. Quando se separou de sua primeira esposa, querendo já deixar transparecer o novo relacionamento com a atual, Betinna, Wulff encomendava pautas X e Y, prontamente publicadas. Deixava-se fotografar em restaurantes, feliz com amigos e a nova companheira, sua ex-assistente de imprensa no gabinete quando ministro-presidente.

Doações não contabilizadas

Num dia cinzento do período pré-natalino, o Bild publicou que Wulff teria deixado desaforos gravados na caixa postal do diretor do jornal. Não só na Alemanha, é de praxe sempre existir um “número de emergência” para redatores-chefes quando estes estão em viagem, ou de férias. Por razões agora claras, a caixa postal foi a única forma de comunicação com o editor do jornal. Wulff o teria ameaçado com “consequências jurídicas” caso a matéria fosse publicada e ainda acrescentou: “Para mim e minha esposa, o Rubicão foi atravessado”.

Dias depois, Wulff afirmava não ter feito qualquer ameaça, e sim, um “pedido para a protelação da publicação da notícia…” até sua volta da viagem ao exterior, para que pudesse “analisar propriamente o caso”. A publicação da notícia do recado malcriado confrontou a opinião pública com uma mudança de paradigma: logo o tabloide Bild apareceria em cena como defensor da liberdade de imprensa, de expressão e da independência jornalística. O engajamento pela liberdade de expressão foi até certo ponto. O protocolo completo da mensagem gravada não foi publicado. Para isso, o tabloide pediu autorização a Wulff, que a negou.

A expressão usada – “atravessar o Rubicão” – tornou-se a mais usada nas redes sociais, em conversas calorosas adaptadas para qualquer contexto do dia a dia, além de um verdadeiro banquete para os inúmeros humoristas políticos existentes no país. A partir desse dia, Wulff virou motivo de chacota e de escárnio diário, manchando de lama um cargo até então respeitado e honrado no país.

A partir da primeira publicação, se juntaram a revista Der Spiegel e o jornal Süddeutsche Zeitung, autor da primeira reportagem denunciando as falcatruas do ex-chanceler Helmut Kohl e as doações de milhões de marcos alemães não contabilizadas nos livros do partido naquele fatídico dezembro de 1999.

Renúncia tardia

No caso de Wullf, teria havido fontes descobertas pela Der Spiegel, mas como esta não achara propício publicar, teria passado a batata quente para o Süddeutsche Zeitung e, assim, os jornais de alta capacidade investigativa davam sua contribuição para a transparência da classe política enquanto faziam suas transações com a “mercadoria notícia”.

Nesse contexto de notícias diárias sobre presentes, empréstimos com uma taxa de juros muito abaixo das vigentes no mercado, férias gratuitas na casa de amigos na ilha de Mallorca, na Espanha, questionava-se se a imprensa não estaria provocando uma “caça” a Christian Wulff, uma estratégia de continuidade para que o “Caso Wulff” não caísse no esquecimento, principalmente na época das festas do final do ano, tradicionalmente isentas de assuntos políticos na mídia. Esse foi um dos motivos que levaram Angela Merkel a colocar no cargo um político pálido, imaturo e inexperiente. O deslumbramento, a vaidade pessoal e a imaturidade política fizeram com que Wulff cometesse erros de iniciante, deixando gravada uma mensagem na caixa postal do redator-chefe mais influente do país.

Qualquer presidente, cercado de bons assessores e de uma assessoria de imprensa competente, não se daria ao luxo de cometer tal equívoco. Mesmo tendo mais tarde se desculpado perante Kai Diekmann, esse tiro no pé tirou o resto de credibilidade que ainda existia junto à população.

Nessa dinâmica diária da imprensa, sempre nos alimentando com novos detalhes, perdia em reputação o cargo até então intocável e distante das questões mundanas do dia a dia na política. Não demorou muito e a opinião pública iniciou o debate sobre a real necessidade de um posto de presidente no país. Só mesmo o requerimento da promotoria federal pedindo a suspensão da imunidade de Wulff o levou finalmente a renunciar. Como não poderia deixar de ser, a renúncia tardia do ex-presidente não resultou no fim do debate na mídia.

Pensão vitalícia

Iniciaram-se as discussões sobre a pensão de 199.000 euros – com o termo obsoleto Ehrensold, originário da linguagem militarista e que é usado quando se refere ao tempo após o exercício da presidência. Vale lembrar que, poucos dias antes de ser eleito, Christian Wulff afirmou em entrevista à TV pública ZDF que a pensão vitalícia não estaria em harmonia com o Zeitgeist (espírito da época) e precisaria ser reformada.

O ex-presidente podia abdicar dessa renda, como fez o antecessor Horst Köhler, mas para o aumento da ira dos alemães Wulff exigiu a pensão. Juristas especializados discutem calorosamente o procedimento sob o prisma jurídico e moral. Também por ter ocupado o cargo somente por 597 dias e não ter renunciado por motivos de saúde ou idade, e sim devido ao requerimento da promotoria, muitos analistas políticos e juristas não acham procedente a aprovação da pensão vitalícia. Abusando ainda mais da paciência dos alemães, a discussão sobre se o ex-presidente teria direto a uma quantia vitalícia de 280.000 euros por ano para despesas de escritório e funcionários, além de motorista e carro adequado à sua posição, ainda persiste nos veículos de comunicação.

Adversários políticos argumentam a discrepância entre esse procedimento e o adotado com funcionários públicos que, ao cometerem pequenos delitos, são imediatamente afastados de seus respectivos cargos e a pensão vitalícia só é liberada depois de provada sua inocência.

Último capítulo

Christian Wulff entrará para os anais da história alemã como um presidente deslumbrado com o poder e que até hoje não entendeu que o poder é concedido somente de forma temporária. Contrariando o bom senso, o comedimento e 74% dos alemães, Wulff aceitou a despedida com honras militares no jardim do palácio presidencial – e com isso levou o mico político dos últimos anos ao ápice. Cento e sessenta convidados cancelaram a ida à cerimônia; integrantes do gabinete de Angela Merkel – incluindo o chefe da fração do CDU, Volker Kauder e o ministro das Finanças, Wolfgang Schäuble – não foram convidados. Todos os quatro ex-presidentes ainda vivos – Walter Scheeel, Richard von Weizäcker, Roman Herzog e Horst Köhler – rejeitaram o convite. O presidente da Corte da cidade de Karlsruhe, a mais importante do país, também não apareceu.

A cerimônia militar de maior importância para civis, o chamado Zapfenstreich, também vai ficar na história pelo barulho infernal causado por 200 manifestantes de diferentes idades que se organizaram pela internet. Com seus apitos de todos os tamanhos e suas potentes vuvuzelas, mesmo do lado de fora dos muros do palácio conseguiram se fazer presentes durante toda a cerimônia. O franzido da testa de Christian Wulff e a expressão de vergonha no rosto de Angela Merkel ficarão para sempre na memória de quem acompanhou ao vivo um espetáculo deprimente, obsoleto e improcedente.

O ex-presidente conseguiu provocar nos alemães, de todas as faixas etárias e convicções políticas, uma fúria até hoje desconhecida quando se falava do cargo da Presidência, preenchido com ética, moral e um saudável distanciamento do jogo político de interesses.

O último capítulo dessa novela ainda está por vir. No mais tardar daqui a seis meses, quando a promotoria estadual promete divulgar os resultados da busca ocorrida na semana passada na casa mais famosa da pacata cidade de Hannover. Se as investigações do momento resultarão em processo, isso até agora ninguém sabe. O que se sabe é que muita água terá que passar por debaixo da ponte antes que Christian Wulff possa iniciar algo parecido com a reconstrução sua carreira de político.

A imprensa alemã divulgou na segunda-feira (12/3), que o ex-presidente se recolheu atrás de altos muros de um convento, onde procuraria “sossego depois de meses turbulentos”.

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[Fátima Lacerda é formada em Letras (RJ) e gestão cultural em Berlim, onde está radicada desde 1988]