Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Prefeito e desembargador tentam calar blogueiros

Não pode passar sem registro o que está acontecendo em Mato Grosso na questão da liberdade de opinião. Um estado que é campeão em produção agrícola, mas que também se destaca muito no quesito da truculência das autoridades no trato com jornalistas independentes. Em março, dois ataques contra jornalistas estão causando grande indignação por aqui. Notadamente pelos jornalistas como eu, mais zelosos pelas prerrogativas de nossa categoria.

O primeiro alvo dos ataques é o jornalista Enock Cavalcanti, de longa tradição no estado e que, ultimamente, vem tendo seus espaços reduzidos na mídia tradicional de nossa região. Emissoras de televisão e jornalões daqui fecharam as portas para Enock porque ele é daqueles que entende que o que está errado na administração pública é que deve merecer destaque – e crítica –, justamente para que os administradores sejam constrangidos a colocarem a coisa nos trilhos.

Em meio a uma maioria de “jornais amigos e jornalistas amestrados”, como ele mesmo gosta de anotar, Enock se mantém ativo através do seu blogue Página do E, que se constitui, hoje,em permanente alternativa para tantos quantos procuram se informar (ou informar) sobre aquilo que a mídia tradicional opta sempre por esconder.

Durante uma mobilização dos servidores do Poder Judiciário, no final de 2011, em que o presidente do Tribunal de Justiça mato-grossense, desembargador Rubens de Oliveira, vacilava em definir uma data para começar a saldar dívidas pretéritas daquele poder para com seus servidores, a Página do E publicou uma charge que deixou o magistrado tiririca: numa foto do desembargador foi acrescentado um nariz de Pinóquio sobre a fase: “Prometer e não cumprir é pior do que mentir”.

Enquanto a grande mídia se calava sobre a posição vacilante do presidente do TJ, o blogueiro sustentou a cobrança que levou inclusive os servidores a uma greve geral de três dias – até que o magistrado definiu uma data, resolveu liberar a grana devida para os trabalhadores e encerrou o exercício sendo até chamado de “papai noel” pelos dirigentes do sindicato da categoria. Feita a paz com os grevistas, o desembargador Rubens de Oliveira parece que não perdoou a gozação do blogueiro e, em março deste ano, conseguiu que o Ministério Público abrisse processo contra Enock Cavalcanti, acusando-o de difamá-lo, caluniá-lo e injuriá-lo com a publicação da tal charge.

Onças e jacarés

Foi uma charge até ingênua, diante do tanto que se tem visto com relação a Lula, Dilma, Gilmar Mendes, José Serra, José Sarney e outros que tais. Mas o desembargador manteve-se irredutível. Nem um apelo à sua história, que publiquei em alguns blogues, demoveu a fúria do desembargador a quem pedi para ser mais “Rubinho” e menos “Rubão”.

Fred Fagundes, o segundo blogueiro atacado em Mato Grosso, é jornalista e publicitário e já militou no site de humor Jacaré Banguela, que goza de bom conceito pelo Brasil afora. Agora, em carreira solo, mantém o blogue Papo de Homem. Imaginem que, para caracterizar a penúria em que vive atualmente a cidade de Cuiabá e os serviços essenciais de que depende a maioria de sua população, o blogueiro humorista simulou uma carta, assinada pelo prefeito Chico Galindo (PTB), em que o alcaide disputa com outros necessitados pelo Brasil afora os favores do badalado apresentador Luciano Huck, apelando no sentido de que o marido da Angélica consiga recursos para que ele possa consertar a estrutura sempre sucateada do Pronto Socorro municipal, volta e meia denunciado como um palco de horrores na cidade.

Galindo não gostou da brincadeira e acionou o Gaeco – grupo que articula a inteligência do Ministério Público com a inteligência da Polícia Judiciária do estado, no sentido de melhor reprimir o crime organizado em Mato Grosso. Por causa da piada, que era aquela carta de mentirinha, Fred Fagundes passou a ser caçado por toda a Cuiabá, denunciado por falsidade ideológica e apontado como uma espécie de inimigo público número 1. Graças ao prefeito, o Gaeco deu uma folga ao crime organizado e foi caçar o blogueiro.

Sim, caros amigos, situações como essa ainda acontecem no Mato Grosso. Há muito tempo já nos livramos das onças e dos jacarés que costumavam passear pelas ruas de nossa capital, em coloridas reportagens divulgadas na grande mídia nacional – que ainda continua confundindo Cuiabá com a capital de Mato Grosso do Sul, Campo Grande. Este estado, devido à sua pujança econômica, já conseguiu se livrar daquela maldição de só ser pautado pelos grandes jornais do Rio e de São Paulo quando alguma tribo desconhecida era, enfim, contatada pelos irmãos Villas Boas ou um outro qualquer sertanista aventureiro.

De costas para a região

Sim, em muitas frentes o Mato Grosso avançou. A sustentação de um jornalismo crítico, vigilante e independente em relação aos poderosos, todavia, ainda constitui tarefa arriscada por essas terras desbravadas pelo marechal Rondon. Aí estão os jornalistas-blogueiros Enock Cavalcanti e Fred Fagundes que não me deixam mentir. Mesmo dando um trato humorístico à abordagem de nossa realidade, eles acabam sendo vítimas da truculência de governantes e administradores que parecem interessados em manter a nossa imprensa eternamente subserviente ao poder. Quando se fala de mídia regional, pelo Brasil afora, infelizmente, a imagem que se impõe é sempre a imagem de um jornalismo atrelado, subserviente – e em Mato Grosso não tem sido diferente.

Com este artigo, registro e louvo o esforço algo quixotesco mas tão vital de profissionais como o Enock, o Fred, a Adriana Vandoni, o Gibran Lachowski, o Alexandre Aprá, o João Negrão e uns poucos outros. São profetas de um amanhã que deve e precisa ser diferente. Resolvi escrever este artigo como uma espécie de mensagem que se coloca na garrafa e joga ao mar, para alertar quem tem talvez tenha mais poderes do que nós para atuar sobre essa realidade conflitada. É preciso descentralizar a cobertura jornalística no país e lançar um olhar mais cuidadoso sobre estes vastos interiores do Brasil.

Antigamente, Cuiabá abrigava sucursais da Folha de S.Paulo, do Estado de S.Paulo, do Correio Braziliense, da revista Veja, de O Globo. À medida que os grandes veículos da imprensa nacional voltam suas costas para esta região, a truculência dos poderosos volta a dar o tom. Torço para que esses blogueiros continuem em sua cruzada. Sem eles, estaríamos completamente órfãos.

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[Ademar Adams é jornalista]