Um dos mais brilhantes jornalistas que o Brasil produziu, Ricardo Boechat sabe disso melhor do que ninguém: santo de casa não faz milagre. Mas a casa pode mudar as regras do jogo, aos 47’ do segundo tempo. E fazer milagre pelo seu santo. Traduzindo: a revista Veja há 11 anos fulminou Boechat. Gerou sua demissão do jornal O Globo e da TV Globo. Tudo porque ele aparecia em um grampo. Agora Veja adota sentido contrário com seu redator-chefe, Policarpo Junior. A casa quer salvar São Policarpo ao divulgar grampos em que Carlinhos Cachoeira absolve o jornalista como um ser inexpugnável.
Uai: que seja inexpugnável. O que causa estranheza é simples: a revista perdeu o ethos fulminante, com o qual fuzilava “bandidos” de ocasião, tornando os seus clássicos vieux combatants (os mesmos “bandidos”) ora aliados adventícios: para justificarem a petição moral de princípios da publicação. Ou por outra: a revista Veja teve de usar, nesse final de semana, das frases de Carlinhos Cachoeira para defender São Policarpo. “O Policarpo você conhece muito bem. (…) Ele não faz favor para ninguém e muito menos para você”, disse o contraventor, hoje preso, para seu auxiliar e ex-araponga Jairo Martins, também encarcerado pela Operação Monte Carlo. “Nós temos de ter jornalista na mão, ô Jairo. Nós temos que ter jornalista. O Policarpo nunca vai ser nosso…”, relatou Veja neste fim de semana.
Bem de vida
Só para você lembrar: em 2005, Cachoeira foi responsável pela entrega a Policarpo da fita que deu origem ao chamado escândalo do Mensalão, na qual o então diretor dos Correios, Maurício Marinho, recebe um pacote de R$ 3 mil. Essa fita, cujas imagens e diálogos foram veiculados por Veja em primeira mão, foi gravada por auxiliares do próprio Cachoeira.
Reconhecido, ao lado do norte-americano Bill Kovach, como um dos pais mundiais da crítica de mídia moderna, Alberto Dines há mais de quinze anos já alertava para o surgimento do “jornalismo fiteiro”. Trata-se do conjunto de jornalistas que se comprazem em pegar escutas feitas pela Polícia Federal, legalmente, ou por arapongas, ilegalmente, e publicá-las na íntegra. O jornalismo investigativo, que deveria usar os documentos oficiais como ponto de partida, passou a usá-los como ponto de chegada. E não para por aí. Teve jornalista que chegou a admitir que um procurador da República alterasse a sua reportagem. E, depois de vitaminada, ela foi usada como peça inicial de uma ação: devidamente prolatada não pelo procurador, mas por uma parte interessada no processo…
O jornalismo fiteiro já não tinha limites quanto ao seu conteúdo: agora surfou os limites quanto à sua defesa ética. Aliás, não surfou os limites: os destruiu, por vários motivos, inclusive esses. “O milagre diferenciador dá-se nas situações-limite, nas encruzilhadas do destino onde só valem as opções morais”, escreveu o mesmo Alberto Dines à página 15 de sua obra magna sobre a vida de Stefan Zweig.
Pois bem: tudo o que você viu nesse final de semana a revista Veja fazer para defender um seu funcionário, ela fez ao contrário há 11 anos. Fulminou Boechat, um gênio do jornalismo, porque ele aparecia num grampo numa situação muitíssimo mais confortável do que Policarpo. Fosse culpado, como Veja apontou, Boechat não estaria hoje bem de vida, de sorriso perene, aparecendo na TV, no rádio etc.
Confira como Veja comemorou o fuzilamento de Boechat, em edição de 25 de junho de 2001:
REPERCUSSÃO
Escândalo no setor de telefonia faz Globo demitir Ricardo Boechat
Por Bia Reis
O jornalista Ricardo Boechat, que assinava a coluna mais lida do jornal O Globo, foi demitido neste domingo, depois que uma reportagem de VEJA revelou bastidores da guerra entre o grupo canadense TIW e o presidente do Banco Opportunity, Daniel Dantas, pelo controle de das empresas de telefonia celular Telemig Celular e Tele Norte Celular. Nesta segunda-feira, o jornal carioca não explica a saída de Boechat, mas informa na capa que a coluna Swann volta a ser publicada. O jornalista também foi afastado do Bom Dia Brasil, da Rede Globo.
Reportagem de VEJA desta semana divulga uma série de ligações telefônicas que desvenda a guerra entre dois grupos pelo controle de empresas de telefonia móvel. Em uma das ligações, Boechat conversa com Paulo Marinho, assessor de Nelson Tanure, aliado da TIW e acionista majoritário do Jornal do Brasil. Em um telefonema de 15 de abril, o jornalista conta a Marinho o teor do texto que seria publicado no dia seguinte sobre a disputa no setor de telefonia e explica detalhes dos procedimentos internos do jornal.
Pela conversa, fica claro que a direção de O Globo não sabia sobre o grau de ligação do jornalista com Tanure nem que a reportagem havia sido discutida com Marinho. Não há menção a favor, pagamento ou outras práticas rregulares de compensação.
Dez dias depois da publicação, o texto foi usado como peça de processo na ação judicial dos fundos de pensão, aliados da TIW, contra o Opportunity.
Bastidores – De acordo com o Jornal do Brasil, Boechat conversou na manhã de domingo com o editor-chefe do jornal, Rodolfo Fernandes. O jornalista perguntou se deveria escrever um artigo explicando seu diálogo ou apresentar pedido de demissão. Como resposta, escutou que sua situação já estava insustentável. À noite, o diretor-executivo do jornal foi até a casa de Boechat e oficializou a demissão.
A decisão de demitir o jornalista foi unânime, ainda segundo o Jornal do Brasil. Os responsáveis pelo jornalismo das Organizações Globo consideraram que a conduta de Boechat feriu as normas do código de ética da empresa. Eles concordaram que o jornalista não poderia ter lido seu texto para Marinho nem discutir questões internas do jornal.
Instrução – As conversas gravadas sugerem que a participação de Boechat foi além da reportagem por encomenda que acabou por derrubá-lo. Em outro diálogo, não reproduzido por VEJA, Boechat instruiu Tanure sobre como agir e o que falar em uma conversa com o vice-presidente das Organizações Globo, João Roberto Marinho.
O objetivo era passar a imagem de um empresário sem ambições políticas nem projeto de poder, o que seria visto com maus olhos no concorrente dono do Jornal do Brasil. Análise feita pelo perito Ricardo Molina comprova que a voz gravada na fita é de Boechat e aponta que não há indícios de que a gravação tenha sido editada.
Veja também
Os três volumes do inquérito da Operação Monte Carlo:
***
[Claudio Julio Tognolli é jornalista]