Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A cobertura da lâmpada queimada

A busca pelo imediatismo e de fechar diversas edições diárias em vários veículos faz muitas vezes com que assuntos simples se tornem o tema central. Ao mesmo tempo, a ausência do poder público faz a imprensa cumprir este papel, mais do que o necessário. Veja o seguinte exemplo.

Uma lâmpada se queimou. Desde a noite, a luminária de uma rua no bairro do Cardume estava apagada. A luz que vinha dela compreendia uma parte da rua e deixava escuro um curto espaço da via. Não era um local movimentado e nem perigoso, mas causava certo incômodo. A iluminação do resto da rua seguia intacta. Ao depararem com a lâmpada queimada, os moradores pensaram: “Quem devemos chamar para resolver o problema?” A companhia elétrica? Não, demorariam dias para chegar, fora a demora no atendimento telefônico. O corpo de bombeiros? Mas não havia ninguém para socorrer. Poderiam falar que o poste estava caindo, mas não havia sinal de problemas. A Companhia de Engenharia de Tráfego? Diriam que os semáforos estavam apagados. A polícia? Fios roubados talvez comovessem mais a corporação.

Até que decidiram quem deveriam acionar. Era o principal. Aquele que resolve. Aquele que sempre consegue as soluções dos problemas: a imprensa. Cada um tratou de ligar para uma redação diferente, para uma TV diversa, para os rádios da manhã e para o setor de reclamações dos jornais. Todos denunciaram a falta de energia no bairro. Logo, repórteres se colocaram a disposição e correram para cobrir o acontecido.

Na TV – Ao meio-dia, os jornais começaram mostrando o problema da falta de energia no bairro do Cardume. Mesmo de dia, o link ao vivo mostrava a lâmpada e uma série de moradores revoltados com a falta de energia. O helicóptero sobrevoava o bairro e observava de cima toda a movimentação das pessoas. Em nota, a equipe de energia elétrica informou que iria verificar o acontecido e que logo tudo seria resolvido. Depois, um dos apresentadores lembrou um triste momento, no qual conviveu com o mesmo problema, e não havia ninguém para o ajudar. Criticou ainda todos os órgãos públicos possíveis.

No rádio – A entrada foi rápida, mas a reportagem descreveu o abalo sofrido pelos moradores da lâmpada apagada. Âncoras abriram os programas narrando momentos de tensão que podem ser provocados pela falta de energia e ainda cobraram a falta de respeito do poder público que deixa uma lâmpada ficar apagada em bairros da cidade. Informou que o policiamento também iria ser reforçado na região; afinal, poderia ser uma noite sem luz.

Nos jornais – Os repórteres conversaram com os moradores e logo pediram balanços à companhia elétrica sobre o número de lâmpadas que queimaram no bairro Cardume nos últimos dez anos. Entraram em contato com o transporte público para apurar se os ônibus circulariam da mesma maneira sem energia. Ao policiamento, questionaram se a lâmpada realmente se queimou, ou se seria um atentado contra o bairro. Também entraram em contato com o fabricante da lâmpada, o qual informou que, às vezes, elas realmente queimam. No outro dia, matérias estampariam: “Lâmpadas queimadas no Cardume aumentam em 100%”. (Onde nunca houve uma lâmpada queimada, agora tinha mais que o dobro.)

Na internet – Um link foi estampado na primeira página: “Veja em tempo real a cobertura da lâmpada queimada no bairro do Cardume”.

A luz voltou

A troca da lâmpada: À tarde, a poeira baixou e a lâmpada não foi arrumada. Parece que a companhia de energia elétrica iria trocá-la no outro dia de manhã, durante os jornais ao vivo.

Afinal, depois de tanta repercussão negativa, a solução do problema precisava ser mostrada. Enviaram um comunicado à imprensa, de que haveria um entrevistado e tudo transmitido no local.

Enfim, a luz voltou. Já o Cardume, nunca mais foi o mesmo.

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[Paulo Talarico é jornalista, Osasco, SP]