Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Não nasci para ser jornalista

É isso. Eu não nasci para ser jornalista. E isso é um personagem que tomei como eu. É um certo pesar, uma derrota grande na vida, essa constatação. Porque o jornalismo não é nada do que acho, queria ou acredito. As escolhas são bem diferentes. Aquela coisa da ordem de importância das coisas, como se ela realmente existisse. Algumas expressões são bem características para isso, como “dar leitura”. O jornalismo é fazer aquilo que dê leitura. E isso explica bem porque não nasci para ser jornalista.

Porque sempre penso que o ideal seria justamente escrever sobre aquilo que as pessoas fingem não existir e, logo, prefeririam não ler sobre. Homofobia, machismo, discriminação, injustiça social e coisas do tipo. Coisas essas que a sociedade, do alto de suas cadeiras confortáveis, acredita piamente não haver e, se vez ou outra tratam do assunto, se servem apenas da babaquice que é a caridade: “Ah, sim, uns coitados, podemos ajudá-los.” Jornalismo não deveria ser feito para ajudar ninguém, seja da situação ou oposição, seja rico ou pedinte.

Não nasci mesmo para ser jornalista. Não sei fazer o que dá leitura, não consigo fazer um lide e nem mesmo um texto digno de revista piauí ou The New Yorker. O que faço no dia-a-dia é teimar, me mutilar a cada hora, me retorcer. Eu não nasci para fazer jornalismo. Não sei seguir tendências e nem achar que a vida de um político é mais importante que a vida de uma travesti. Nem pintar esse político como herói ou bandido e nem a travesti como exótica ou digna de dó. Não sei achar que a visita de uma celebridade é mais importante que a falta de vacinas na rede pública de saúde. Não sei.

Tão errado quanto o jornalismo

Não nasci para ser jornalista porque eu não sei fazer essas coisas. O que eu pretendia fazer é informar, tão somente. Contar as coisas, dizer o que se passa, o que acontece e ocorre, entrar em debates, incomodar mesmo. Mas não. Jornalismo quer é acomodar. Esse jornalismo que não se aprende facilmente, mas se sabe fácil nas redações. Basta uma semana em qualquer uma delas. A dificuldade inicial é só saber quem deve estar cômodo. Mas a minha intenção era incomodar todo mundo. Sim, o mundo inteiro.

Que o mundo todo soubesse suas escatologias, seus preconceitos, seus defeitos, suas injustiças, que a vida é uma merda, que as coisas são bem desgraçadas. O jornalismo que existe não é esse. O jornalismo que existe é quase ficcional: quer inventar mocinhos e bandidos, princesas e vagabundas, certos e errados. Isso não é o mundo. O mundo é todo errado. O mundo é tão errado quanto o jornalismo. Só que os defeitos não são esses que dizem por aí – como a vaidade de uma repórter, um erro de concordância, a defesa de quem paga.

É um jogo, tão somente

Isso é só o escancaro. Ocorre que eu não sei fazer o que dá leitura. Não sei tentar copiar o que os outros jornais já vão fazer, pelo simples motivo de que eles vão fazer, logo teremos que fazer também. Se for para fazer igual aos outros, melhor cruzar os braços: isso já está feito. A ideia é fazer outra coisa, sempre. E que não venham com aquele papo de concursos ou academia porque lá também se vai fazer igual. O jornalismo não é diferente nesses lugares. E eu sou um péssimo jornalista, um péssimo profissional e ainda faço as coisas todas com uma imensa má vontade.

Eu não nasci para ser jornalista. Porque não sei politizar, agradar, convencer. Só sei dizer, e mal. Não sei forjar ou aumentar as coisas. Prejudicar para conseguir algo. Bajular para conseguir algo. E jornalismo é isso. É isso o que fizeram dele, nas redações, nas academias, nas assessorias. É um jogo, tão somente. Não está aparte, não é arte, não é dom, não é estudo. E eu não nasci para ser jornalista e faço mal esse papel, com imenso pesar. Porque dos jornalistas que estão aí e estão por surgir, eu sou o pior deles. O que menos sabe sobreviver e, ainda mais, vencer sob estas condições.

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[Vandré Abreu é jornalista, Goiânia, GO]