Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A morte de um intelectual público

A morte de Walder de Góes encerra a carreira brilhante de um goiano que conseguiu romper os limites geográficos do Estado e se destacar no cenário nacional. Primeiro como jornalista e, posteriormente, como cientista e consultor político. Walder morreu na terça-feira, 10, no Hospital Santa Helena, em Goiânia. Ele tinha 74 anos. Nos últimos três anos, lutou contra um câncer de pulmão, que chegou a ser vencido, mas reincidiu mais agressivo e fatal.

Sua vivacidade era tão grande, sua curiosidade pelos fatos da vida tão ampla, que as pessoas que o entrevistavam sempre pensavam que era mais jovem. A idade linear não correspondia à sua agilidade mental e, mesmo, física. O sociólogo americano Russell Jacoby lamenta, no livro Os Últimos Intelectuais, o progressivo desaparecimento dos intelectuais públicos.

Fora as exceções de praxe, os intelectuais estão cada vez mais apegados às suas carreiras acadêmicas – nas quais têm de “pontuar” para melhorar salários e, em alguns casos, obter gratificações – e às vezes ignoram o debate público, optando, não raro, pelos congressos e a vida interna. Walder de Góes, pelo contrário, tornou-se um intelectual público, contribuindo para qualificar o debate, para torná-lo mais científico e menos impressionista.

Visão ampliada

Antes de adoecer, Walder de Góes morava em Brasília, onde presidia o Instituto Brasileiro de Estudos Políticos (Ibep), auge de uma carreira que teve início em Goiânia, primeiro no Diário do Oeste e depois no jornal O Popular, em 1962. Na época, o irmão Wagner de Góes era redator-chefe do jornal e foi ele quem levou Walder para O Popular. Ele já era casado com Oneida Rocha, com quem teve quatro filhos: Marcelo, Eleida, Eneida e Walder de Góes Filho.

A ascensão no jornal foi rápida. “Além de reportagem política, Walder assinava a principal coluna de política”, lembra Hélio Rocha, que na época era editor do jornal e, nesse mesmo período, foi colega de Walder no curso de Ciências Sociais na Universidade Federal de Goiás. Ele conta que Walder era um repórter com grande capacidade de discernimento, que sabia apurar, era muito bom para analisar e dono de um texto excelente.

Era também ousado, corajoso e até agressivo, conta o jornalista Reynaldo Rocha. “Uma vez, proibido de entrar no Palácio das Esmeraldas porque havia criticado a adesão do então governador Mauro Borges à revolução de 31 de março de 1964, ele pulou a janela do palácio”, conta. Mas era também um jornalista polido, elegante e de uma cultura admirável, afirma Reynaldo. “Walder era extremamente talentoso e sempre procurava ir além do trivial”, afirma Herbert de Moraes Ribeiro, diretor responsável do Jornal Opção. “Ele tinha a rara capacidade de, com sua análise, enriquecer os fatos. Uma pesquisa em suas mãos virava, rapidamente, diamante lapidado”, acrescenta Herbert.

Esse talento logo foi reconhecido e Walder passou a ser correspondente do Jornal do Brasil – o mais influente da época, e de agências de notícias. Para o jornalista Reynaldo Rocha, Walder foi “um mestre”. Quando ele iniciou a carreira, em 1968, Walder era colunista político e correspondente do JB. Com ele Reynaldo aprendeu o a ser rigoroso na apuração e fiel à fonte. A convivência com Walder em Goiânia foi curta, mas eles continuaram a trabalhar juntos quando Walder foi para o Rio. Reynaldo ocupou a vaga de correspondente do JB em Goiás e passou a ser subordinado a Walder. “Com ele eu aprendi a ter uma visão ampliada do jornalismo.” Herbert frisa que Walder tinha uma espécie de “dom” ao explicar a realidade política. “Ele escrevia bem e explicava os fatos com clareza.”

Jornalista notável

Foi o jornalista, que nasceu na cidade de Pedro Afonso, que levou o debate político para a televisão em Goiás. Walder comandava, nas noites de quinta-feira, o programa de entrevista Sem Reservas, na TV Anhanguera, e tinha um telespectador assíduo, o hoje secretário-chefe da Casa Civil do governo de Goiás, o professor de Direito e deputado federal licenciado Vil­mar Rocha (PSD). “Ele entrevistou em seu programa os maiores nomes do Brasil”, lembra Rocha, para quem Walder foi o mais importante e influente jornalista de sua época. “O mais talentoso, mais brilhante e inteligente da sua geração.” Potencial que teria levado a Nasa a convidá-lo para cobrir o lançamento de um foguete no Cabo Canaveral, nos Estados Unidos.

Mais tarde, quando era presidente do Instituto Tancredo Neves, do então Par­ti­do da Frente Liberal (PFL), de 2000 a 2006, Vilmar Rocha contratou a consultoria do Ibep e teve a oportunidade de co­nhecer pessoalmente o jornalista a quem prestigiava nos tempos de mocidade. A partir daí eles se tornaram grandes amigos. Vilmar Rocha estava no velório de Walder e la­mentou que poucos jornalistas tenham ido reverenciar um dos um maiores jornalistas goianos e brasileiros de todos os tempos. “Walder sabia ‘organizar’ a realidade política de tal modo que ela ficava compreensível para todos. Quando parecia muito confuso, Walder saía com uma ideia luminosa. Porém, como não era dogmático, expunha as virtudes e, também, as limitações de suas análises.”

Em dez anos Goiás ficou pequeno para Walder e, em 1972, ele aceitou o convite do jornalista Alberto Dines, então editor-chefe do Jornal do Brasil, para morar no Rio de Janeiro. Dines disse ao Jornal Opção na quinta-feira, 15, que o JB tinha uma grande rede de correspondentes regionais e que Walder era um dos melhores. “Além de ser um bom jornalista, tinha uma base cultural acadêmica excepcional, de chamar a atenção.” Ele foi escolhido entre os correspondentes regionais para ocupar a cadeira de editor nacional e fez carreira brilhante no JB. “Ele tinha o sotaque carregado de Goiás, mas era sofisticado intelectualmente e fazia um jornalismo moderno.” Walder está entre os talentos que Dines teve o orgulho e descobrir. “Tenho faro para descobrir talentos e Walder foi um deles.” O jornalista e Alberto Dines tornaram-se amigos. “Walder veio diversas vezes ao programa [Observatório da Imprensa na TV] e sempre tive o maior apreço por ele.”

Ainda no JB, Walder se tornou correspondente na Argentina, Portugal e In­glaterra. Hélio Rocha lembra que ele foi expulso de Buenos Aires porque antecipou uma conspiração contra o governo da presidente María Estela Mar­tínez, conhecida como Isabelita Perón. “Ele estava certo e o golpe realmente aconteceu duas semanas depois.” Isso ocorreu em 1976. “Ele tinha uma percepção aguda dos fatos”, afirma Reynaldo Ro­cha. Percebeu, por exemplo, conta Reynaldo, a expansão do agronegócio no Centro-Oeste. O que deu origem ao livro A Marcha Além do Oeste. “Foi o primeiro jornalista a perceber a nova vertente do agronegócio.” Democrata nato, compartilhava suas ideias e não fazia questão, depois, de alardear que havia sido o criador original.

Em Lisboa, Walder era muito próximo do presidente Mário Soares e é sobre Portugal um dos livros que publicou em 2007: Revolução em Portugal. Em parceria com a cientista política Aspásia Camargo, Walder publicou O Brasil do General Gei­sel, em 1978, O Drama da Sucessão e a Crise do Regime, em 1984, e Diálogo Com Cor­deiro de Farias: Meio Século de Combate, em 2001.

Walder tinha pleno domínio do inglês e falava um pouco de francês, conta Hélio Rocha. Conhecia quase que o mundo todo. “Para mim, Walder é o sucessor de Carlos Castello Branco em suas análises e no texto”, afirma Reynaldo Rocha. “Ele escrevia rápido e com precisão. Fala-se muito no desaparecimento dos grandes jornalistas, daqueles profissionais que, para produzir uma análise consistente, não precisam de dez declarações ou citações. Com a morte de Walder desaparece um deles. Era um jornalista notável, com a capacidade do scholar para organizar e divulgar as informações”, afirma Herbert.

Olhos verdes

Do Rio, Walder pousou em Brasília, onde assumiu a chefia da sucursal do JB e também uma cadeira na Universidade de Brasília (UnB). Quando saiu do JB estruturou a sucursal de O Es­tado de S. Paulo em Brasília. Aos poucos foi trocando o jornalismo pela análise política e se tornou consultor de empresas nacionais e estrangeiras e de políticos. Suas últimas análises foram feitas pelo Ibep, que fechou quando Walder adoeceu. Várias de suas análises foram publicadas pelo Jornal Opção. Nos últimos anos, foi uma espécie de consultor informal do Jornal Opção, cedendo suas pesquisas e, mesmo, escrevendo textos para o jornal.

O velório de Walder reuniu jornalistas que trabalharam com ele em Goiânia, como Armando A­cioli, Walter Menezes e Artur Rios. “Walder era um jornalista com visão nacional”, conta A­cioli. “Era inteligente, corajoso e estudioso e nunca abaixou a cabeça para nenhum político”, completa Menezes, que lembra que Walder fez história no Diá­rio do Oeste ao produzir uma mensagem para Juscelino Ku­bistchek, que passava por Jataí para dar início a sua campanha para presidente da República.

O diretor de Jornalismo da Organização Jaime Câmara, Luiz Fernando Rocha Lima, ressaltou que Walder de Góes teve uma passagem importante na história da OJC, de Goiás e do Brasil. Tanto em Goiânia como em Brasília, onde foi editor do Jornal de Brasília. “Foi uma passagem marcante, razão pela qual ele se projetou no cenário nacional”, comentou. Foi, na opinião de Reynaldo Rocha, o maior jornalista de Go­iás. “Um texto inigualável, um repórter nato que sentia e ia atrás, uma personalidade fulgurante, muito além de tudo.”

Walder de Góes era seletivo em relação a amizades, conta Hélio Rocha. “Não sei se isso é um de­feito, mas com os amigos era cordial, franco e sincero.” Herbert, um de seus amigos mais caros, conta: “Ele era leal aos amigos e gostava muito de Domiciano de Faria, de Reynaldo Rocha e de Hélio Rocha”. No velório, alguns desses amigos se misturavam com a família: os oito irmãos, entre eles o procurador do Estado aposentado Wilder Tavares de Góes e o jornalista Wagner de Góes, os quatro filhos e sobrinhos. A maioria da família traz um traço marcante em Walder, os olhos verdes num tom nublado. Olhos que mesmo alegres trazem uma certa melancolia.

Os últimos três anos Walder passou na casa da irmã, a médica Carlinda Emília de Góes e Silva. “O que com certeza prolongou sua vida”, comenta Hélio Rocha. Carlinda era extremamente dedicada ao irmão.

Os livros de um analista perspicaz da história

Walder de Góes escreveu livros que são importantes para a compreensão da história do Brasil recente. Em parceria com a professora e hoje deputada Aspásia Camargo, Walder escreveu Diálogo com Cordeiro de Farias: Meio Século de Combate (Biblioteca do Exército, 635 páginas). Trata-se de um maná tanto para se entender a história militar quanto a história política do país no século 20. O general Cordeiro de Farias foi um participante e observador da vida pública brasileira de 1922 a 1966.

Em O Brasil do General Geisel (Nova Fronteira, 185 páginas), Walder de Góes examina, com acuidade, o governo que iniciou o processo de abertura política do país, asfixiando a ditadura civil-militar aos poucos. Outro livro importante, O Drama da Sucessão e a Crise do Regime (Nova Fronteira, 222 páginas), foi escrito em parceria com Aspásia Camargo.

Pela Editora da UnB, Walder lançou Revolução em Portugal (353 páginas), indicando que suas ambições intelectuais não eram circunscritas ao Brasil. Os pares de Walder no campo da ciência política sempre disseram que ele tinha uma percepção aguda do país. Nos últimos a­nos, além da pesquisa propriamente dita, o exame rigoroso de documentos, Walder passou a lidar com pesquisas qualitativas sobre vários as­suntos, notadamente políticos e econômicos. Suas análises não eram baseadas na intuição e em insights – preferia lidar com pesquisas rigorosas, das quais extraía interpretações sempre originais.

Mais amigo que fonte

Walder de Góes era o que no jargão jornalístico chamamos de fonte. Foi a ele que durante anos a fio recorri para entender a dinâmica da política nacional e internacional. As fontes, no jornalismo, são classificadas com base no nível de confiança de suas informações. Walder perfilava entre as mais confiáveis e acessíveis. Ele quase nunca se negava a dar uma entrevista e as dava com incrível bom humor. Ainda tenho gravadas algumas dessas entrevistas que são inconfundíveis devido à voz grave e as pausas que marcavam a conversa de Wal­der de Góes. Com o tempo, a fonte foi se tornando amigo e as entrevistas sa­íam do seu foco para percorrer assuntos diversos: viagens, música, fatos comuns do dia a dia. Quem morreu na terça-feira, 10, era mais um amigo que uma fonte.

***

[Andréia Bahia, do Jornal Opção(Goiânia, GO)]