Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Descobrimento, Tiradentes. Só?

Os antigos gregos tinham a palavra ephemerís para designar o registro de cada dia, a vida cotidiana, aquilo que passa. O étimo continua presente na palavra portuguesa efêmero, com o significado do que dura pouco, como a vida de um animal que nasce e morre no mesmo dia.

Roberto Drummond, um dos escritores mais lidos nas décadas de 1970 e 80, ainda antes de sua obra referencial, Hilda Furacão, ser transformada em minissérie na TV Globo, fez um belo conto sobre o tema, narrativa que escreveu especialmente para a Revista Brasileira de Letras, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e intitulou “A vida breve das borboletas”.

Antes de chegar ao português, o grego fez escala no latim ephemeris, ali designando não apenas as tábuas astronômicas, mas também um memorial diário, que incluía o calendário e o livro de despesas diárias.

Originalmente ephemeris, efêmero, designava apenas a tabela que previa a posição dos astros no firmamento. Passou depois a indicar também outros acontecimentos previsíveis e as obras que relatavam a vida de figuras ilustres.

Mudança de tom

As efemérides não são apenas lembradas e celebradas, algumas são também temidas, como as de agosto no Brasil, assustadoras, pois o mês tem fama de azarento.

Exemplos não faltam. Em agosto de 1909 foi assassinado pelo amante da mulher o escritor Euclides da Cunha, autor de Os Sertões, cujo centenário de publicação ocorreu em 2002. Comentando a efeméride, o jornalista Geraldo Mayrink, em suplemento especial de O Estado de S. Paulo, lembrou que era um fraco o autor da frase “O sertanejo é antes de tudo um forte”, não por sua estatura moral ou intelectual, mas por causa da tuberculose e de outras doenças que o devastavam.

Canudos merece mais um parágrafo para mostrar como uma ninharia pode deflagrar uma tragédia. Em junho de 1896, Antônio Conselheiro comprou e pagou antecipadamente em Juazeiro a madeira para cobrir a nova igreja de Belo Monte. O negociante não fez a entrega. Começou a ser divulgado que Antonio Vicente Mendes Maciel, o Antonio Conselheiro, e seus jagunços iriam buscá-la. O juiz de Direito Arlindo Leoni enviou telegrama ao então governador da Bahia, Luís Viana, pedindo providências. Começava a guerra que tanto nos envergonhou, levando o Exército a executar moradores pobres que habitavam 5.200 casas, destruídas uma a uma. Conclui Euclides: “Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a História, resistiu até ao esgotamento completo”. Seus últimos defensores: “Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados”.

Além das efemérides, gregos como romanos festejavam o tempo com outras divisões. Havia lustrum, lustro,sinônimo de quinquênio, porque na antiga Roma os prédios públicos eram limpos e purificados de cinco em cinco anos. Lustrum veio de lustrare, percorrer o zodíaco repleto de astros brilhantes. Por isso, as celebrações eram associadas a limpeza e brilho. Nessas cerimônias os censores aproveitavam a aglomeração popular para fazer os censos.

Mais tarde a palavra censor mudou de significado porque os sacerdotes e magistrados passaram a reprovar certos usos e costumes que registravam, aplicando punições.

Também o decênio de alguma coisa era motivo de celebração. Todavia as efemérides preferem números redondos. Assim, num período de dez anos, não se festejam com tanta ênfase os outros anos. O quinquênio e o decênio revestem-se de solenidades, o que também remete aos astros, pois a origem remota de solenidade são as festas que celebravam o Sol, um deus pagão, realizadas, naturalmente, à luz do astro, com direito a clorofila e fotossíntese. E mudança de tom na cor da pele, para as partes descobertas, pois as vestes longas predominavam. Atualmente, elas predominam também na noite. E não por cuidados com o Sol, mas com a elegância.

Luva de pelica

As palavras são assim. Uma nos leva a muitas outras, que por sua vez remetem a outras mais.

Sem, porém, perder o fio da meada, deixemos as efemérides de agosto e vamos às de abril. A revista Aventuras na História (Editora Abril, cuja fundação celebra também o mês em que estamos) traz duas boas páginas sobre as efemérides do mês. O telefone celular, sem o qual parece impossível viver hoje, notadamente na mídia, apareceu no mundo no dia 3 de abril de 1973 quando Martin Cooper, gerente da Motorola, fez em Nova York a primeira ligação. No dia 5, é preciso lembrar a execução de Ethel e Julius Rosenberg, em 1951, nos EUA, acusados de espionarem para a URSS. No dia 21 (1792) temos Tiradentes. No dia 22 o descobrimento ou achamento do Brasil (1500).

São curiosidades interessantíssimas por levarem à reflexão. A capa deste número, o 105 de sua existência, sai do lugar-comum e não dá capa à efeméride dos 100 anos da tragédia do Titanic. Traz uma suástica e em letras garrafais a referência solar das matérias: CIÊNCIA NAZISTA.

É muito pertinente a lembrança, pois os cientistas que trabalhavam para Adolf Hitler nos laboratórios, ao migrarem para os EUA, sobretudo, deram decisiva contribuição à conquista espacial e a outras tantas descobertas em diversos ramos, não apenas da física, mas também da medicina. Enquanto isso, no Brasil, ainda achamos que o criminoso nazista Joseph Mengele morreu calmamente na praia de Bertioga, no litoral paulista, conclusão a que chegaram Badan Palhares (justo ele!) e Romeu Tuma na condução das investigações.

A revista Aventuras na História, cuja diretora de redação é Patrícia Hargreaves, tornou-se pouco a pouco uma referência em revistas de História, principalmente por conciliar o rigor das informações e interpretações com curiosidades como as citadas, que produzem público adicional e temperam o gosto da leitura dos que habitualmente a leriam por outros motivos.

Nas efemérides de abril, apenas um reparo: o papa Bonifácio VIII fundou a Universidade La Sapienza (A Sabedoria), em Roma, em 1303 e não em 1323, como informado. O Sumo Pontífice morreu naquele mesmo ano, em outubro.Portanto, em 1323, estava morto há 20 anos.

Em janeiro de 2008, aquela universidade seria palco de séria polêmica. O papa Bento XVI iria visitá-la no dia 17, mas no dia 15 estudantes e professores se mobilizaram e impediram sua presença ali.

Ainda assim, o papa distribuiu ao mundo o discurso que faria na ocasião e não deixou de dar um tapa de luva de pelica naqueles que o proibiram de dar a Aula Magna do começo do ano letivo. Disse, entre coisas:

“O que é que pode e deve dizer um Papa numa ocasião como esta? Na minha preleção em Ratisbona, falei certamente como Papa, mas fi-lo sobretudo enquanto ex-professor daquela minha universidade, procurando unir lembranças e atualidade. Mas, à universidade ‘Sapienza’, a antiga universidade de Roma, fui convidado a vir precisamente como Bispo de Roma e, por isso, devo falar enquanto tal. Sem dúvida, outrora a ‘Sapienza’ era a universidade do Papa, mas hoje é uma universidade laica com aquela autonomia que, na base do seu próprio conceito constituinte, sempre fez parte da natureza da universidade, que deve estar vinculada exclusivamente à autoridade da verdade. Na sua liberdade de autoridades políticas e eclesiásticas, a universidade encontra a sua função particular, nomeadamente na sociedade moderna, que tem necessidade de uma instituição deste gênero”.

Temos muito ainda o que celebrar em abril, mas despontam os preparativos de maio, mês das noivas, mês das mães, que se abre no dia primeiro festejando o trabalho.

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[Deonísio da Silva é doutor em Letras pela USP, vice-reitor da Universidade Estácio de Sá e autor de 34 livros, o mais recente é o romance Lotte & Zweig]