Sou um dos muitos Silvas espalhados pelo Brasil. Vivi a infância inteira esperando que um dia pudesse – como sonho pequeno-burguês – virar classe média. Circulava a ideia, na época, de que as filhas da classe média iam para a Disney quando completavam 15 anos. Os meninos, como eu, ganhavam presentes representativos da entrada na vida adulta, como um carnê em que o pai começava a pagar o consórcio de compra do primeiro carro do filho. Dentro de um prazo de 36 meses, o jovem da classe média, então com 18 anos, ganhava um automóvel novinho em folha.
Essas ideias reinavam e, tacitamente, muitos jovens pobres fermentavam o desejo de se tornarem classe média no futuro. Poderiam assim entrar em aviões, fazer faculdade, ler mais livros, assinar revistas e TV a cabo. Foi nessas condições que me produzi e acabei, mais tarde, me tornando o jovem marxista que sou hoje, depois de ter concluído meu curso universitário e de passar pelo mercado de trabalho, experimentando muito do que o capitalismo pode fornecer.
Pois bem. No dia 15 de abril de 2012, na revista dominical d’O Globo, Artur Xexéo publicou o artigo “Sobre a classe média”. Foi um gesto saudosista de um membro da – nas palavras do autor – “velha classe média”, ressentida pela queda na qualidade dos produtos e serviços a que tinha acesso num passado glorioso não tão distante. O que era para ser uma simples crônica tornou-se, em muitos como eu (alguns esquerdistas, uns poucos declarados apartidários e outros inclusive desejosos por ascensão social), uma leitura indignada. Xexéo praticamente defende que a nova classe média, a nova burguesia – composta por, entre outros, empreendedores, segundo o autor – é a culpada pela queda de qualidade nos produtos e serviços.
Criminalizar a ascensão social
O que mais causa espécie no texto de Xexéo não é o tom de crítica à suposta nova burguesia, mas a explicitação de um desgosto. Trocando em miúdos: a nova classe média é a antiga classe C. Portanto, os costumes, hábitos, gostos, padrões etc. dessa antiga classe são, de acordo com o cronista, o que constitui os recém-chegados à classe média. Assim, o que vemos em “Sobre a classe média” é uma multidão de generalizações, reducionismos, imprecisões e discriminações quanto àquilo que se imaginam ser as classes populares. Já dizia Vanise Gomes de Medeiros, professora do Rio de Janeiro cuja tese analisou o discurso cronístico: “Os cronistas funcionam como formadores e legitimadores de imaginários”. Não estamos culpando Xexéo como se ele fosse a fonte desses preconceitos. Mas seu nome corrobora uma posição extremamente elitista.
Um exemplo dessas simplificações é uma afirmação do cronista:
“A nova classe média virou objeto de pesquisa de tudo aqui no Brasil. Tem marca de eletrônicos que produz aparelhos especialmente para os novos consumidores. A tal marca descobriu que ‘o consumidor da classe C ama música em alto volume. O lazer se concentra nos churrascos de fim de semana, onde ocorre a confraternização’.”
Citando, entre aspas, a tal “descoberta” da marca de eletrônicos, Xexéo não questiona a legitimidade da informação, tampouco pensa em outras formas de lazer da nova burguesia. Qualquer um que tenha lido 50 anos a mil, autobiografia do músico conhecido como Lobão, sabe que a “velha classe média” também gosta de som alto, às vezes até passando dos limites respeitosos para com a vizinhança. A Zona Sul do Rio de Janeiro – onde Lobão passou a infância –, Xexéo, aprecia músicas em volume elevado, grita quando o Flamengo faz gol e faz pesquisa de preço, às vezes até comprando no supermarket.
Não sou partidário da política da tolerância: é apenas uma forma mais elegante de não aceitação das diferenças radicais e reforço dos padrões dominantes. No entanto, Xexéo ecoa um discurso xenófobo: esses alienígenas da classe C não podem querer dominar uma classe média já estabelecida há décadas no Brasil! Mudando de língua, é como um francês conservador de direita querendo que um argelino ou marroquino vá embora da Europa. É um norte-americano que só aceita um mexicano em cargos subalternos. Em vez de detectar os problemas, crueldades e indiferenças da sociedade de classes, Xexéo criminaliza a ascensão social tão prometida e alardeada pelo capitalismo: o pote de ouro de tolo ao fim de um arco-íris em tons de cinza. Les nouveaux bourgeois tiram qualquer um do sério… porque parecem ameaçar (e para por aí) a hegemonia de uma classe que não faz mais qualquer sentido.
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[Phellipe Marcel da Silva Esteves é jornalista, editor, tradutor e professor, Rio de Janeiro, RJ]