Poucas semanas antes do início do torneio na Polônia e Ucrânia, a mídia alemã questionava freneticamente se a seleção não deveria boicotar a Eurocopa. Tentou por vários dias e sem sucesso. Nem mesmo o escândalo atual que acomete vários países da Europa, sobre manipulação de jogos e até mesmo do campeonato da Copa da Uefa. O amor pelo futebol e/ou pelo fator entretenimento futebol, venceu.
O gancho das matérias durante o período pré-torneio era quase sempre o mesmo: a ex-presidente ucraniana Yulia Timoshenko, na época em greve de fome em protesto contra as condições precárias do cárcere. Falando indiretamente à imprensa por intermédio de sua filha, Jewgenija, ela declarou ser contra o boicote dos jogos em seu país. Enquanto isso, sua filha fazia uma viagem de forte teor político espelhado na mídia alemã, incluindo discursos eleitorais da região do Norte da Vestfália com a presença de Angela Merkel, que soube muito bem colocar essa pauta em cena, alegando a solidariedade à filha da ex-presidente, que sentava na primeira fila cercada por políticos aliados de Merkel.
A pauta quase uníssona ganhara peso também pelo fato de médicos alemães da renomada clínica Charité terem se proposto tratar a ex-presidente. Por um certo momento e pela implacável pressão da mídia, um boicote do torneio na Ucrânia pareceu até mesmo palpável. Terminada a greve de fome de quase 15 dias, a mídia voltou a focar na crise do euro, deixando em segundo plano o que os analistas chamam “fase quente da Timoshenko”.
Em busca de audiência
Na sexta-feira (1/6), antes de iniciar o treinamento na cidade de Gdansk, a federação alemã de futebol, liderada pelo seu presidente Wolfgang Niesbach, o empresário da equipe, Oliver Bierhoff, e alguns jogadores do time visitaram o ex-campo de extermínio em Auschwitz. Uma ótima chance para a mídia “zerar a fatura”, para tirar o peso moral da opinião pública, virar a página e se concentrar na “coisa mais maravilhosa do mundo”, com diz um ditado popular alemão.
A revista semanal Stern comentou:
“A Associação decidiu em uma forma sutil de memória porque a visita não tinha a intenção de fazer ‘campanha de publicidade’. A cobertura da mídia foi positiva. Muitos comentaristas elogiaram a memória da equipe nacional como um gesto de sinal bom e importante.”
Pressionada pelo megaevento e sua consequências em números, a mídia dessa vez também fracassou em deixar claro que não se trata, e nem mesmo pode se tratar, de “virar a página” e que o tema Auschwitz não deve jamais ter a página virada. Essa reflexão é totalmente inconciliável com o outro lado da moeda, que são os patrocinadores, os dados do Ibope que, mesmo nas TVs públicas, são fatores que podem fazer rolar cabeças de diretores dos grêmios. As TVs públicas ARD e ZDF precisam cristalizar seus respectivos perfis e ratificar sua legitimidade perante o espectador.
Capacete de aço
Claro que a imprensa descobriu que o empresário da equipe (e também uma espécie de garoto-propaganda), Bierhoff, teria dito que a questão do Holocausto entraria em foco no contexto da Eurocopa: “Pode ser uma conversa junto à lareira ou uma palestra”, teria dito o estratégico Bierhoff em março passado. Essa declaração causou a ira o presidente do conselho geral dos judeus, Dieter Graumann: “Será que ele (Bierhoff) não sabe o quanto sofremos com tal expressão? Será que ele sabe que em Auschwitz o nosso povo foi exterminado sendo jogado pela chaminé?”
Durante dias, a mídia foi a transmissora oficial das alfinetadas em estilo pingue-pongue. O escorregão histórico acontece sempre na Alemanha, quando se espera a todo custo um efeito positivo, para dizer ao mínimo, da mídia. Como quarto poder no Estado, com um efeito positivo dessa ou daquela notícia, ela “suaviza” temas complexos, tirando-os temporariamente da zona de tabu.
Hans Flick, cotreinador da seleção alemã, foi perguntado por um jornalista durante a primeira coletiva, já na Polônia, o que fazer frente aos poderosos chutes do atacante português Cristiano Ronaldo, o primeiro adversário da Alemanha no torneio: “Colocar o capacete de aço e encher o peito”. A expressão “capacete de aço” levou imediatamente à associação da invasão militar da Alemanha na Polônia, em 1939. O resultado disso na mídia voltou a esquentar os ânimos, logo agora que a estratégia de botar panos quentes, começava a funcionar.
O foco é a Holanda
Depois da repercussão negativa nos telejornais de maior audiência do país, rapidamente apareceu uma nota no site da federação:
“Sinto muito se causei irritação por um comentário infeliz meu. Foi um lapso de língua, mas que não deve causar quaisquer falsas impressões. Geralmente não é meu estilo me expressar com um vocabulário militar para assuntos esportivos. Peço desculpas pela expressão usada na conferência de imprensa. Eu mesmo sou o mais irritado com isso porque sei o quão sensível é lidar com essa questão.”
Depois de tantos tropeços e agora que nenhuma câmera se encontra frente ao hospital onde está internada a ex-presidente Yulia Timoshenko, e que nenhuma matéria fala do alto grau de homofobia existente no país, a bola rola dentro do campo nos estádios da Ucrânia como se esse evento não tivesse qualquer conotação política. Enquanto isso, a maioria dos canais de TV alemães acha que a gente comprou esse engodo esportivo. A seleção alemã, com sua vitória suada sobre o time de Portugal, conseguiu empurrar o caráter político dos jogos na Ucrânia para um fundo da gaveta. A mídia agradece, aliviada.
Desde o fim do primeiro jogo, todo o foco é o derby contra o rival máximo, a Holanda. Basta somente uma derrota da equipe para que o caráter político do megaevento volte às pautas e, na melhor maneira alemã, chorar o leite derramado e questionar exaustivamente se não teria sido melhor boicotar logo de início o torneio.
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[Fátima Lacerda é formada em Letras, RJ, e gestão cultural em Berlim, onde está radicada desde 1988]