Ética, palavra que se origina do grego ethos – valores e hábitos de um povo –, tem com significado os costumes de uma sociedade. Para o filósofo Aristóteles, um grupo social, por exemplo, é capaz de impor seus costumes ao homem. Ou seja, através de códigos de conduta a sociedade dita normas a serem seguidas pelo sujeito. Nessa perspectiva, a ética se mostra como a moral e os valores que regem o modo de ser e de se comportar dos indivíduos em sociedade. Desta forma, a mídia só se encontra presente na vida do indivíduo por intermédio de sua realização em sociedade. Aqui se faz imprescindível observar que os veículos de comunicação na elaboração dos processos simbólicos da vida sociocultural do homem causarão reflexo direto na vida deste, que compartilha da informação disseminada pelos mesmos.
Essa observação afigura-se evidente, mas o grau de discussão revela uma complexidade fundamental para se compreender os valores-notícia implícitos e/ou explícitos nas manchetes de capas e seus respectivos leads do jornal Aqui PE e sua relação com a ética jornalística, por exemplo. Afinal, nos últimos anos a cobertura popular tem se mostrado como um ramo do jornalismo que vem se expandindo consideravelmente. Esse crescimento pode ser notado com o surgimento de veículos como Aqui BH (Minas Gerais, 2005 aos dias atuais), Notícia Agora (Espírito Santo, 2000 até hoje), Agora São Paulo (São Paulo, 1999 aos dias atuais), Daqui (Goiás, 2007 até hoje), Aqui PE (Pernambuco, 2008 aos dias atuais), O Dia (Rio de Janeiro, 1951 até hoje), entre outros.
A presença desses periódicos reforça o desafio e compromisso ético do profissional do jornalismo. Exemplo disso é a manchete de capa do jornal Aqui PE (Recife, PE) de 25/10/2011: “Besta-fera de Lajedo é pego pela polícia”. O jornal adjetiva Luiz Lopes da Silva (como besta-fera), de 41 anos, acusado de assassinar sua esposa, filha e outras duas crianças na zona rural de Calçado, município de Lajedo, cidade do Agreste pernambucano. Aqui, o discurso adotado pelo jornal entra em divergência com o art.11, inciso II, do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros que diz: “O jornalista não pode divulgar informações: II – de caráter mórbido, sensacionalista ou contrário aos valores humanos, especialmente em coberturas de crimes e acidentes.”
O comportamento com o flanelinha
A partir desse exemplo, é possível observar que o discurso jornalístico muitas vezes determina o papel que o sujeito irá ocupar em sociedade. Neste caso, o de um demônio (besta-fera), porém, viabilizado pelo ambiente sociocultural do mesmo. A pesquisadora e jornalista Márcia Franz Amaral, na obra Jornalismo Popular, evidencia que os jornais populares moldam o seu discurso informativo de acordo com as características culturais dos seus leitores. Mas adverte: “Isso não os exime de suas responsabilidades éticas, apenas mostra que os jornalistas devem tomar cuidado para separar o que de fato é mau jornalismo daquilo que é efetivamente jornalismo para uma determinada camada social, porém numa linguagem mais simples e chamativa.” A autora também expõe que é preciso ficar atento para que as matérias e chamadas de capa não reforcem a exclusão e nem culpem as pessoas por sua pobreza: “Velhinhos num asilo lúgubre não precisam ser expostos, nem a mãe chorando no caixão do filho assassinado. A dramaticidade da notícia deve ficar evidente não por adjetivos, mas pela descrição dos fatos dramáticos, ou seja, a descrição da intensidade do fato dependerá de um texto bem apurado e portador de uma tensão jornalística”.
Ainda fazendo uso desta ótica de interpretação, o exemplo da manchete do jornal Aqui PE anteriormente mencionado afigura-se como uma postura intencional. De acordo com Amaral, esse tipo de manchete se faz presente pelo fato de haver uma campanha de culpabilização dos pobres, por parte dos veículos de comunicação de massa, mais especificamente os voltados para as camadas populares. Contudo, a jornalista faz uma crítica ao enfatizar que, em vez de culpar as pessoas que vão de encontro às regras da boa convivência em sociedade, fazendo uso de uma linguagem “clichê”, esta imprensa deveria era batalhar pelos direitos dos mesmos.
Não foi bem assim que o periódico Aqui PE se comportou com o flanelinha Marcos André Lopes da Silva, de 20 anos, que atendeu suas necessidades fisiológicas na própria delegacia, quando na possibilidade de ser preso mais uma vez, por ter furtado botijões de gás e materiais de limpeza de uma clínica localizada no bairro do Espinheiro, da cidade do Recife. O jornal ironizou Marcos André com a manchete: “Bandido ‘Arriou o Barro’ ao Ser Preso” (30/09/2011).
Contextualização do acontecimento
Mas, não é a busca de ações que contribuam com a promoção humana, principalmente daqueles excluídos de uma vida mais justa e democrática nas suas relações, um dos fundamentos éticos da profissão do jornalista? Conforme o código de ética, mais precisamente o sexto artigo, deixa claro que a prática profissional tem finalidade pública e de natureza social. Entretanto, atuar em conformidade com esse princípio, eis o grande desafio para qualquer jornalista. Nesse universo de ideias, o jornalista Cláudio Abramo, no seu livro A regra do jogo. O jornalismo e a ética do marceneiro, expõe um discurso interessante:
“Sou jornalista, mas gosto mesmo é de marcenaria. Gosto de fazer móveis, cadeiras e minha ética como marceneiro é igual a minha ética como jornalista – não tenho duas. Não existe uma ética específica do jornalista. Sua ética é a mesma do cidadão.”
Assim, um dos pilares da notícia é o de que esta nada mais é que o reflexo do seu público leitor. Ao enfatizar que a matéria-prima do jornalismo é a construção e reelaboração da factualidade social, Abramo dissemina a ideia de que o profissional da imprensa deve transpor barreiras do que ele propõe como “construção da realidade de primeiro grau”, realizada pelas fontes. Aqui é que se encontra o grande desafio da prática jornalística. O “ir além”, que se faz primeiramente quando o jornalista se questiona sobre a factualidade social do acontecimento e se é possível noticiá-lo.
Portanto, a apuração jornalística já tem início no processo de seleção e hierarquização dos fatos que entram na pauta das discussões propostas pelos meios de comunicação. A próxima fase da produção da notícia, seguindo a linha de raciocínio de Abramo, é o processo de contextualização do acontecimento, tendo como modelo a noção de que seu relato irá ganhar visibilidade pública. Portanto, há um fundamento de ordem ética que baliza o processo de investigação, apuração e divulgação da notícia.
Ironia e metáfora
Desta forma, há uma responsabilidade social por parte do veículo de comunicação, após apurar, selecionar e divulgar informações como “Bandido ‘Arriou o Barro’ ao Ser Preso”. Ao conceber a atividade da imprensa como uma aliança da factualidade social com a rotina de práticas e processos do veículo de comunicação, Cláudio Abramo justifica a importância da presença, ética jornalística, no dia-a-dia do jornalista, que funciona como um guia de tomadas de decisões.
Como se pode observar, o dilema da ética na prática jornalística é bastante dialético. Mas o fato é que não restam mais dúvidas de que as enuncividades que se fazem presentes na vida do homem estão estampadas nas capas dos jornais, em manchetes de revistas, televisão e rádio e na internet (fruto da revolução tecnocientífica do século 20). É aqui que o jornalismo, inscrito no âmbito das Ciências Sociais aplicadas, é compreendido como uma atividade profissional, com a finalidade de coletar e disseminar informações obedecendo a regras, saberes e ética. No Aqui PE, essa ética se mostra através dos recursos linguísticos que adota. Ao fazer uso de figuras de linguagem como a ironia e a metáfora, é possível encontrar discursos como o da manchete de 26/08/2009: “Levou Gaia e Matou Urso Traíra”.
“A fixação pelo bumbum”
Dentro dessa abordagem teórica a reflexão sobre a ética e a atividade jornalística perpassa, contudo na análise da Constituição Federal do Brasil, mais especificamente pelo art.5º, inciso IX e X:
“IX- É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; X- São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando o direito à indenização pelo dano material ou decorrente de sua violação.”
Apesar do inciso X deixar transparente que não há impedimentos legais no concernente à censura ou licença para a produção de informações, a prática jornalística está direcionada a respeitar a imagem das pessoas de forma transparente, pois, estão assegurados os seus direitos frente à Constituição. É possível depreender que é um direito do cidadão ter a informação sob o aspecto qualitativo, sem agressão a imagem das pessoas como em algumas das manchetes do Aqui PE anteriormente mencionadas.
Referência para falar do jornalismo voltado para as camadas populares no Brasil – sob o arquétipo do sensacionalismo –, a pesquisadora Rosa Nívea Pedroso expressa algumas ideias que vão de encontro ao Código de Ética dos jornalistas e à própria Constituição, expondo que a linguagem do jornal sensacionalista (aqui, tratando-se daqueles voltados às camadas populares) dá vazão à “valorização da emoção em detrimento da informação; exploração do extraordinário e do vulgar, de forma espetacular e desproporcional; adequação discursiva ao status semiótico das classes subalternas; destaque de elementos insignificantes, ambíguos, supérfluos ou sugestivos; subtração de elementos importantes e acréscimo ou invenção de palavras ou fatos; valorização de conteúdos ou temáticas isoladas, com poucas possibilidades de desdobramento nas edições subsequentes e sem contextualização político-econômico-social-cultural”.
Eis um exemplo de manchete e seu respectivo lead do Aqui PE de 06 e 07/08/2011 que se enquadra perfeitamente com as observações da autora Pedroso: “Popozudas ou Turbinadas?” “Para os que começaram a ler esta matéria com a ideia errada, um aviso: este texto não trata de futebol, nem de cerveja, e sim de uma paixão que começa e se evidenciar para os homens brasileiros na época das espinhas na cara e de longas horas de banho e que o acompanha por toda a vida: a fixação pelo bumbum da mulher.”
Peculiaridades e desejos
Remetido por anos ao estudo do jornal popular Notícias Populares (São Paulo), por sua linguagem considerada sensacionalista, o jornalista Danilo Angrimani observa que o sensacionalismo não é peculiar ao discurso voltado exclusivamente as camadas populares e está presente na prática jornalística como um todo. E adverte: “Quando se enclausura um veículo nessa denominação, se faz também uma tentativa de colocá-lo à margem, de afastá-lo das mídias ‘sérias’. Se um jornal (telejornal ou radiojornal) é taxado de sensacionalista, significa para o público que o meio não atendeu às suas expectativas. Na abrangência do seu emprego, sensacionalista é confundido não só com qualificativos editoriais como audácia, irreverência, questionamento, mas também com imprecisão, erro na apuração, distorção, deturpação, editorial agressivo – que são acontecimentos isolados e que podem ocorrer dentro de um jornal informativo comum.”
De qualquer forma, sejam quais forem as exposições empregadas para o jornalismo popular, há que se observar sensacionalismo como sendo o ato de tornar sensacional o que necessariamente não o é. Nesse caso, a notícia muitas vezes extrapola a realidade e os limites éticos do jornalismo. Mas também não se pode negar que os veículos de comunicação não se fazem deslocados da ação humana, e ao se fazerem, estabelecem laços simbólicos com o público, proferindo de alguma forma peculiaridades e desejos do homem.
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[Ronaldo Barbosa Lima é jornalista, Recife, PE]