Bastaram algumas poucas semanas para que a chamada CPI do Cachoeira fosse transformada em “circo de má qualidade”, com ajuda da generosa e complacente mídia de toda espécie. É o deputado Cândido Vaccarezza (PT-SP), com seu torpedo enviado ao governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral; é o mutismo do principal investigado, Carlinhos Cachoeira; é a encenação de alguns parlamentares que se dizem indignados; é a disposição de dois governadores, Marcondes Perillo e Agnelo Queiroz, respectivamente, de Goiás e do Distrito Federal, em oferecer à CPI a quebra de seu sigilo bancário e outros sigilos; são os aplausos de claques, de dentro e de fora dos partidos, aos ilustres depoentes.
Tudo parece fazer parte de um bem planejado espetáculo circense, do qual se pode dizer que é de péssima qualidade, pois sequer tem a verve de um grande tribuno do tipo Roberto Jefferson. A mídia acompanha tudo, gesto por gesto, número por número, numa demonstração de que assumiu mesmo, nestes tempos midiáticos, o papel de repetidora de sinais do governo, do Parlamento, dos poderosos. Repetidora de sinais – é nisso que a mídia, inclusive a impressa, se transformou.
A mídia não deposita sobre os fatos, nas meias informações que recebe, nenhuma espécie de raciocínio inteligente. Dá de manchete, em letras e imagens garrafais, essa bobagem de governadores oferecendo a quebra de seus sigilos bancários. Sequer suspeita de que o sujeito que deposita em sua conta corrente, em seu nome, o dinheiro sujo da corrupção, antes de ser corrupto é um parvo, um idiota. E, convenhamos, os parvos e idiotas nunca chegarão a governar seus estados de origem.
Um projeto de iluminação
Não se faz jornalismo como antigamente. Vejam esta meia informação: a Delta, a empreiteira que tem agido sob influência de Carlinhos Cachoeira, tem obras na grande maioria dos estados da Federação e é a construtora-líder do PAC – Programa de Aceleração do Crescimento. O que fazer com essa meia informação? A mídia não pensa em outra coisa senão publicá-la, em flagrante desrespeito a seus leitores, como se todos eles se contentassem com meia informação ou não desejassem a informação plena, por inteiro. Aos consumidores de informação tem sido oferecido um cardápio que sugere muito mais perguntas do que respostas.
Na década de 1970, Paulo Salim Maluf foi secretário dos Transportes no governo de Laudo Natel. Eu trabalhava para o jornal Estado de S.Paulo nessa época como chefe da sucursal do ABC Paulista. Maluf atendeu uma velha reivindicação das cidades da região e implantou um projeto de iluminação das pistas da via Anchieta no trecho em que a rodovia corta áreas urbanizadas de São Caetano e São Bernardo do Campo. Ao notar o quanto era feérica toda aquela luminosidade, coloquei um repórter para investigar, com a seguinte orientação: se é um projeto público, houve licitação; se houve licitação, houve ganhadores e perdedores; investigue; comece pelos perdedores e veja o que eles têm a dizer sobre o projeto.
Jornalismo e entretenimento
Não precisamos de mais de uma semana de apuração para descobrirmos que o projeto de Maluf era um descalabro: mais da metade da luminosidade se perdia para o alto; a iluminação servia mais para orientar a aterrissagem de aviões no aeroporto de Congonhas do que para clarear as pistas da Anchieta. Não quero, com essa história, considerar-me um jornalista melhor que os outros. Quero dizer apenas que lá no ABC emulávamos o tipo de jornalismo que era feito por toda parte nessa época no Brasil.
Por que não eleger ao menos dez obras entre as centenas das que são tocadas sob a responsabilidade da Delta e investigá-las a fundo? Quais as alegações de quem perdeu? Qual a qualidade dos projetos apresentados pela vencedora? Houve reajuste de preços? Quando, quanto, por que? Trabalhar assim, com as desconfianças e a curiosidade típica dos jornalistas, é também o modo de tratar leitores e telespectadores com o respeito e a dignidade que todos merecem.
Esse jeito leniente da mídia só faz emular a estratégia de Rupert Murdoch, que deseja transformar jornalismo em entretenimento. Se ao menos nos proporcionassem um entretenimento de qualidade, à la Roberto Jefferson…
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[Dirceu Martins Pio é ex-diretor da Agência Estado e da Gazeta Mercantil e atual consultor em comunicação corporativa]