A mídia alemã, em sua essência, é de um caráter über-crítico até mesmo quando a equipe alemã de futebol chega invicta às semifinais da Eurocopa. No contexto da transmissão dos jogos, a TV pública alemã ZDF conseguiu o que nem mesmo os mais pessimistas analistas de mídia do país conseguiriam imaginar: a esterilização do futebol.
Günter Netzer, campeão mundial com a seleção de 1974, o mais respeitado e temido analista de futebol, declarou certa vez: “Futebol tem que ser no estádio, numa mistura de paixão, sofrimento, alegria e tristeza. Tudo isso num espaço de tempo muito curto”.
Ao invés de levar a febre que rege os estádios para dentro da casa do torcedor, a ZDF dessa vez optou para um palco montado a céu aberto na ilha de Usedom, no Mar Báltico – da qual a maior parte pertence à Alemanha, à região de Mecklemburgo-Pomerânia, e a outra, bem menor, à Polônia.
O redator-chefe da emissora, Peter Frey, explica: “Estamos em Usedom pela proximidade da fronteira com a Polônia – é uma ilha comum, polonesa e alemã. Além da praia e sensação de férias, sinalizamos uma importante mensagem política: a Europa está crescendo conjuntamente”.
O perfil
Em vez de torcedores acalorados equipados com vuvuzelas, apitos poderosos, trompetes e exibindo a “dança do trenzinho”, como fez a torcida espanhola depois da vitória contra a França nas quartas de final (23/06), vê-se torcedores dispostos a pagar ingresso no valor de 10 euros (aproximadamente 26 reais), sentados em cadeiras de praia enfileiradas frente ao palco com telão montado dentro da água, e a acatar os sinais dos assistentes de produção para aplaudir na hora certa.
Mesmo nos jogos da seleção alemã com temperatura de 29 graus, sol a pino e no período de férias escolares, vários lugares vazios não deixavam dúvida de que a escolha por Usedom não atraiu o público.
Não é de hoje que a emissora goza da reputação de conceber programas para o público-alvo beirando a terceira idade. Na arena em Usedom, a faixa etária não é muito diferente. Um dos humoristas mais conhecidos da Alemanha, Kahl Dall, prestes a completar seus 65 anos, declarou num programa de auditório:
“Depois do meu aniversário, a ZDF vai me ligar. Com certeza”.
No palco em Usedom, além da âncora Katrin Müller-Hohenstein, pontificou o ex-goleiro da seleção Oliver Kahn, incumbido para nos desvendar os mistérios do futebol com seu conhecimento de insider.
Desde 2006, Katrin é a única mulher na equipe do programa esportivo de maior audiência no país, Aktuelles Sportstudio. Nesse formato, sábado à noite, em estúdio e com convidados da classe A do futebol, o programa funciona – o que absolutamente não acontece durante a Eurocopa. Enquanto a Alemanha vai se cristalizando como favorita ao título, o torcedor fica a ver navios…
A ira
KMH, como Katrin é chamada no Twitter, provocou a ira dos torcedores que se veem frente a uma professora de didática de futebol. Nos primeiros dias da programação, as críticas foram implacáveis. O Twitter ferveu durante a transmissão, onde o assunto principal não era mais o futebol, mas o formato da transmissão da ZDF.
Depois de vários dias de crítica em todos os jornais do país, a diretoria da emissora se manteve teimosa e resoluta: “Esse é o formato planejado. Ponto final”, disse o chefe da redação do esporte, Dieter Gruschwitz.
Sobrou o figurino
Depois de longos dias de críticas à forma de fazer jornalismo da infeliz dupla, o foco caiu sobre o figurino usado pela âncora, que pelo frio regente na praia ia de encontro ao planejado clima de verão calculado pela emissora. Pulôver amarelo, calça rosa pink, jaqueta prateada com tom futurista: essas futilidades preencheram a lacuna causada pela plastificação do futebol.
Entre as críticas aos colegas da ZDF, o semanário Der Spiegel anunciou: “A gente quer elogiar os colegas e depara com uma concepção errônea dessas. Assim, fica impossível”.
O jornal conservador Frankfurter Rundschau, não poupou sarcasmo: “Ok. Prefiro ficar em casa. Quem sabe, Constance ou Lago Maggiore, menos a Polônia ou a Ucrânia! Lá tem um monte de torcedores e um monte de jogadores de futebol. Para que construir o estúdio da ZDF em um dos países organizadores? Que tal Usedom? Sinônimo de água de mar, areia, cadeira de praia, comida alemã, língua alemã! E tudo bem pertinho. Um pulo de gato. Então, o que vocês querem mais?”
O tablóide Bild alfinetou usando o slogan da emissora: em vez de “Com a ZDF você vê melhor”, “Com a ZDF, você vê… água”.
Fim da noite
Sempre no fim da noite, Janine, uma jovem alemã craque na internet, sobe ao palco da emissora para contar o que rolou no Twitter durante o dia. Faz uma visita ao Twitter dos jogadores da seleção espanhola, confere as fotos do passeio de bicicleta dos atletas da seleção alemã em dia de folga e fala outras abobrinhas só para comparecer.
Mesmo assim, entre Katrin Müller-Hohenstein e Oliver Kahn, Janine exala juventude e euforia e faz o torcedor esquecer o clima didático-estéril-enfadonho do programa.
A falta de conteúdo nas reportagens chegou a tal ponto que, a partir de um certo momento de frustração, os twitteiros alfinetavam: “Quando Oliver Kahn vai twittar afinal?” Durante dois dias o suspense tomou conta das notícias dos tabloides até que foi criada uma conta para o ex-goleiro, que mesmo antes de escrever qualquer mensagem já contava com mais de 10.000 seguidores.
Ao vivo, Janine o ensinava a tuitar sob os olhos maravilhados da âncora que exaltava: “Nossa.. que legal!”
Espectadores irados
“Quando vem a enchente em Usedom para carregar todo esse palco?” “Só uma enchente pode nos redimir!” eram as mensagens postadas no Twitter.
Permanentes falhas técnicas na transmissão da emissora também contribuíram para a ira dos espectadores. Como se tudo isso não bastasse, o locutor oficial dos jogos principais, Béla Rhety, é detestado pela maioria dos torcedores, que no Twitter exigem sua demissão.
Essa críticas não são infundadas: do jogador espanhol Silva, Béla Rethy fez “da Silva”, provavelmente confundindo com algum integrante da seleção brasileira. Referindo-se ao jogador Eduardo, de origem brasileira, mas naturalizado checo, arriscou: “Eduardo. Esse ai, iniciou a sua vida como brasileiro”. Esses comentários sarcásticos irritam o torcedor alemão, que vê nisso uma postura arrogante. Nenhum comentário sobre onde joga, onde jogou ou qualquer coisa de interessante, fora a procedência cultural.
Monopólio das TVs públicas
Na Alemanha o bolo da transmissão da Eurocopa é dividido entre as duas emissoras públicas que mantêm o monopólio, ARD e ZDF. Quem não tiver satisfeito não terá outra alternativa se não assinar uma TV paga.
A política da mídia alemã com a supremacia das redes públicas com certeza traz vantagens para o telespectador pela responsabilidade com a qualidade. No caso da Eurocopa, como em outros eventos esportivos como o Campeonato Mundial de Atletismo em Berlim, a ZDF deixa muito a desejar: faltam âncoras e comentaristas competentes e carismáticos.
Durante a Eurocopa, a emissora comete um equívoco imperdoável: a esterilização do futebol.
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[Fátima Lacerda é formada em Letras, RJ, e gestão cultural em Berlim, onde está radicada desde 1988]