Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Com e sem serifa

Se você não sabe o que é serifa, melhor saltar a prosa de hoje.

Mas já que você, mordido pela curiosidade, caminhou mais sete palavras para vislumbrar onde essa lereia vai dar, esclareço: serifa é aquele traço ou espessamento que remata os terminais das letras. O logo do Sabático, por exemplo, tem serifa; o do jornal, não.

O texto que você teimou em seguir foi composto em Freight Text Book (corpo 10.3), para o jornal impresso, e em Freigth Text Light (19 pixels), para a versão online, e originalmente digitado em Calisto MT (corpo 13,5), fonte também com serifa. Dois anos atrás, o teria digitado em Caslon, Georgia, Cyan ou Mrs. Eaves, igualmente serifadas.

Sim, sou um tipomaníaco. E daqueles que não só mudam de fonte (ou tipo) como quem troca de camisa, mas até as baixam na internet, grátis e no cartão. Talvez seja uma forma de transtorno obsessivo compulsivo, tão grave quanto comprar ou refugar um livro exclusivamente pela capa, piração de que também padeço.

Anotações e rascunhos

Se um tipo me intriga, tento identificá-lo através do fórum WhatTheFont. Foi assim que descobri qual a fonte utilizada nos créditos dos filmes de Woody Allen (Windsor) e no Kindle (PMN Caecilia), e também a existência de uma versão pirata do tipo usado nas titulações da revista The New Yorker. O que me faltava conhecer – afinal, não sou designer nem estudei paginação – aprendi com um livro que a Zahar acaba de traduzir: Esse É Meu Tipo, do jornalista inglês Simon Garfield (359 págs., tradução de Cid Knipel, R$ 44,90), um tratado de tipologia cheio de histórias saborosas, cuja leitura encherá de prazer mesmo aqueles que não sabem o que é uma ligatura ou uma palavra em versal.

Se, a exemplo da arquitetura, a tipografia expressa uma civilização, uma fonte pode definir um produto, uma instituição, e até reorientar uma campanha política, como aconteceu com a de Barack Obama, deslanchada com a britânica, “formal e dura”, Gill Sans, logo substituída pela “descontraída e mais solta” Gotham, célebre por haver sido projetada para a revista GQ, na virada do milênio.

Quando a Ikea, a Tok Stok sueca, trocou seu visual (saiu Futura, sem serifa, entrou Verdana, idem), foi um deus nos acuda no mercado. Parte da frontovérsia deveu-se ao fato de a família Verdana haver sido concebida pelo britânico Matthew Carter para a Microsoft. Carter também desenhou outro must da era digital, a já citada Georgia, a de melhor leiturabilidade na tela do computador, segundo os entendidos.

A preferência por determinados tipos pode não determinar o sexo e o caráter de uma pessoa, mas esclarece um bocado sobre sua personalidade. De todo modo, assim como os homens são de Marte e as mulheres, de Vênus, as fontes grossas pesadas e com arestas pontiagudas são, tendencialmente, masculinas, e as fantasiosas, mais leves e curvilíneas, vocacionalmente femininas. Se letras usassem roupa, as cursivas vestiriam saia e todos os negritos, bombachas.

Ao primeiro sinal de insatisfação com o que escreveu ou de desânimo para iniciar um novo texto, experimente trocar sua fonte habitual (New Times Roman ou Arial, aposto) por outra, pelo tempo necessário à recuperação e à manutenção daquela velha chama. A adoção de uma nova aparência gráfica já resolveu até casos de bloqueio. Não se envergonhe de ser um Casanova tipográfico, fadado a nunca encontrar o tipo ideal, uma fonte para o resto da vida.

Das mais de 100 mil fontes existentes no mundo, as melhores e piores costumam vir de brinde nos sistemas operacionais e editores de texto. Acredita-se que com apenas meia dúzia delas (Times New Roman, Helvetica, Garamond, Calibri, Gill Sans, Verdana) conseguiríamos sobreviver condignamente.

Arial? Redundante. É a Helvetica da Microsoft. Já lhe tive afeição (na versão Narrow, uma estroinice, reconheço), como já me enrabichei por outros espécimes sem serifa (destaque para Trebuchet e Optima), que ainda considero ideais para anotações e rascunhos. Parecem menos formais e mais contemporâneas, mas a elegância não é seu principal atributo.

Fumaceira das redações

Os escritores americanos se amarram no Courier, corpo 12, que lhes recorda os caracteres medidos em paicas das máquinas de escrever e transmite um certo ar de transitoriedade, adequado a textos ainda abertos a alterações e aprimoramentos. Todos, sem exceção, execram o popular e infantilizado Comic Sans, que, aliás, virou judas de uma agressiva campanha na internet, aparentemente infrutífera.

Anne Fadiman se diz eclética, mas em seus livros e manuscritos rejeita qualquer fonte sem serifa derivada da Helvetica, cujo longo prestígio, notadamente em Nova York (as bancas tkts, a Bloomingdale's, a Gap, a Knoll, o metrô, as caixas de correio), inspirou um documentário dirigido por Gary Hustwit. Nenhuma outra fonte logrou semelhante façanha.

Nossos escritores preferem, quase por unanimidade, a Coca-Cola tipográfica do Windows, o New Times Roman, concebida há 80 anos por Stanley Morison para o Times de Londres. Nesse pormenor, Rubem Fonseca não foge à regra. Seus e-mails, em Calibri, corpo 11, tampouco destoam do gosto majoritário. João Ubaldo Ribeiro quase adotou o Courier New, pelos mesmos motivos de seus colegas americanos, mas embora tenha fechado com o indefectível New Times Roman, corpo 14, dotou seu teclado dos plict-plocts-plim! das máquinas de escrever, ruídos que o rejuvenescem e o levam de volta a Salvador dos anos 1950, “entre a gritaria, a barulheira e a fumaceira das redações”.

Ubaldo tentou, debalde, me converter ao nostálgico artifício. Se há algo de que não sinto a menor saudade é de máquina de escrever.

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[Sérgio Augusto é jornalista, colunista do Estado de S.Paulo]