Foco de interesse empresarial não só no Brasil, a “nova classe média” é objeto de livros e estudos que buscam mapear o perfil de um grupo de consumidores tão cobiçado quanto desconhecido. De editoras de livros a salões de beleza, empresas tradicionalmente voltadas à classe alta reorientam seus investimentos.
A patroa, em crise financeira, diz para a filha não destratar a empregada, porque ela, a empregada, prestes a se casar com um bom partido, pode ser a única oportunidade para a família sair da lama.
A cena, da novela das sete da Globo, Cheias de Charme, pode ser vista como uma alegoria da economia brasileira e mundial. A tão falada “nova classe média”, representadas pelas “empreguetes” do folhetim global, é a moça que todos querem tirar para dançar. E não só no mercado interno: as nações ricas também correm atrás dos mercados consumidores dos emergentes (Brasil incluído).
Não é para menos: em oito anos, de 2003 a 2011, 40 milhões de pessoas passaram das classes D e E para a C no Brasil, segundo dados da FGV (Fundação Getúlio Vargas), do Rio de Janeiro.
Apenas 31 países no mundo têm população maior que essa, equivalente à da Argentina ou à da soma dos habitantes da Dinamarca, da Finlândia, da Noruega, da Irlanda, da Nova Zelândia e da Holanda.
A classe média, ou classe C, como definem os institutos de pesquisa, representa hoje 54% da população brasileira. Na política, ela pode, sozinha, selar uma eleição. Na economia, transforma um pequeno investimento em um negócio gigante.
Os efeitos da mudança são visíveis: a propaganda no Brasil vai mudando e começa a não espelhar apenas brancos e ricos; grupos que só atendiam a classe AAA lançam produtos mais populares; novelas da Globo, como Cheias de Charme e Avenida Brasil, colocam os emergentes no centro da trama, relegando os ricos de berço a núcleos periféricos; vendedores vêm sendo treinados para não desprezar um possível comprador só pela aparência.
“Os empresários perceberam que é essa classe média crescente que dará aos negócios escala econômica. Com essa escala, é possível reduzir os custos e ampliar o lucro”, diz Celso Grisi, professor da FEA (Faculdade Economia e Administração) da USP e diretor do Fractal Consult, instituto especializado em análises de mercado.
Para o presidente da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), Paulo Skaf, a indústria nacional só não se beneficiou ainda mais desse aumento do mercado consumidor por causa do câmbio, que desviou o dinheiro da nova classe média para produtos importados.
“Esse é um bom momento para que as empresas brasileiras possam não só ganhar escala, mas ampliar sua especialização”, afirma.
Aloísio Pinto, vice-presidente de planejamento da WMcCann, uma das principais agências de publicidade do país, afirma que os publicitários tiveram que estudar esse novo consumidor para entender o que ele quer.
“Ficou claro que aquele excesso de luxo, típico da propaganda do passado, não funciona para essa nova classe C. Não basta apenas colocar uma pessoa famosa para atraí-la, para fazê-la comprar. Esse novo público está mais esperto e cínico para os velhos truques da publicidade. Ele valoriza muito grandes lições de vida, histórias que mostram que quem se esforça é recompensado e que quem é mau é punido.”
Um bom exemplo está no ar atualmente. Não tem ator nem cantor famoso, mas uma mãe e um filho, de aparência simples, que tomam um ônibus e um avião para chegar à formatura do irmão, que cursou medicina. A fábula de que o esforço compensa é usada para vender um cartão de crédito.
Em 2011, um anúncio feito pela Neo Gama para a Tim foi ambientado no Complexo do Alemão, no Rio, e o foco estava nos moradores de favela, algo impensável há alguns anos. A intenção era ampliar a venda de celulares com acesso à internet e banda larga pré-paga.
A Tim é um exemplo da nova atitude empresarial. A empresa tem revendas nas favelas cariocas e vendedores circulando nos trens suburbanos do Rio. Comprador não falta, já que ter celular com acesso à internet sai bem mais barato que frequentar lan houses.
Mais exigente
Outras empresas preferem preservar suas marcas “premium” e lançar novas para brigar pelo novo consumidor. No ano passado, por exemplo, o Grupo Fleury, cujos laboratórios são exclusividade da classe AAA paulistana, montou uma nova rede para atender as classes C e B em vários Estados.
Chama-se A+ e já possui 30 unidades na cidade de São Paulo e mais de 90 no país. Muitas das unidades já pertenciam ao grupo, mas funcionavam com outras bandeiras, sem o endosso explícito do Grupo Fleury. Agora, a marca famosa vem junto ao logo da A+.
O presidente do grupo, Omar Hauache, afirma que o consumidor dessa nova classe média emergente está cada vez mais exigente, e o grupo viu nessa mudança a oportunidade para crescer.
“Essas pessoas entraram no mercado formal de trabalho e passaram a ter acesso a planos de saúde corporativo, que representam 70% de nosso faturamento. Elas perceberam que poderiam ter acesso a mais qualidade.” O A+ teve, no primeiro trimestre deste ano, um crescimento de 15% em suas receitas, mesmo índice registrado pelos laboratórios da bandeira Fleury.
Abundam outros exemplos. No setor de academias de ginástica, por exemplo, a Bodytech ressuscitou a marca Fórmula, que agora tem unidades e preços menores. A Bio Ritmo lançou a Smart Fit, que não oferece aulas, apenas os aparelhos, em troca de mensalidades mais baixas. A Kopenhagen criou a Brasil Cacau, com produtos até 80% mais baratos que os da marca-mãe.
A rede de salões de beleza Jacques Jannine, que sempre focou as classes mais altas, criou a Basic Beauty, mais popular. A primeira unidade fica no Mais Shopping Largo 13, em Santo Amaro (zona sul de São Paulo).
Enquanto o corte e a lavagem de um cabelo feminino, no mesmo salão, mas nos Jardins, custam juntos R$ 135, no Basic Beauty, de Santo Amaro, o serviço sai por R$ 40 -70% a menos.
Marcas de combate
O mercado chama essas linhas mais populares de “marcas de combate”. Você mantém os produtos “premium”, para uma elite que pode pagar mais, e cria uma linha diferente para disputar um novo consumidor, que já supriu suas necessidades mais básicas e vai em busca de qualidade.
“As ascensões dentro da classe média explicam o sucesso dessas empreitadas. Num primeiro momento, a pessoa sobe das classes D e E para a C e passa a consumir produtos básicos, como alimentação. Depois ela vai atrás de itens aspiracionais [objetos de desejo] e paga mais por produtos com melhor acabamento, mais bem apresentados”, afirma Grisi.
O fenômeno chegou também ao elitizado mundo das editoras de livros, cuja produção beirou os 500 milhões de exemplares em 2011, quase 200 milhões a mais que em 2003.
A editora Cosac Naify, identificada com um público mais sofisticado, acabou de criar uma coleção de bolso, com preços entre R$ 19,90 e R$ 24,90. Já a Companhia das Letras lançou um novo selo em abril: a Paralela, que tem o objetivo de trabalhar com tiragens altas e preços baixos. Matinas Suzuki Jr., diretor-executivo da editora, prefere não ligar o novo selo ao inchaço da classe média.
“O que sabemos é que está crescendo o número de leitores mais jovens e do sexo feminino, e que há uma demanda por livros mais baratos”, diz. “Mas é um equívoco atribuir isso ao acesso de pessoas à classe média. Esse processo ocorre no mundo todo, não apenas no Brasil.” Mas, já que o aumento do emprego e da renda no Brasil vem acompanhado de maior escolarização básica e de universitários, o que, em tese, tende a elevar a procura por livros, tudo pode estar relacionado, não?
“Poder, pode”, afirma Matinas. “Mas não temos como mensurar.”
O Sinal – O Santo Sudário e o Segredo da Ressurreição, título impensável no catálogo da antiga Companhia das Letras, sai por R$ 24,90 na Livraria Cultura. O recém-lançado Cidade Aberta, de Teju Cole, em formato menor e com 200 páginas a menos que O Sinal, custa R$ 39,90.
Já que todos a querem, cabe a pergunta: quem é e o que quer essa nova classe média brasileira?
A resposta varia, dependendo do interlocutor – e, se o mundo discorda sobre o tema pelo menos desde o século 19, com marxistas puxando de um lado, weberianos de outro, no Brasil não seria diferente.
A Secretaria de Assuntos Estratégicos da Previdência da República tentou criar um critério oficial. Anunciou, no final de maio, que, para o governo federal, está na classe média a pessoa que vive em uma família cuja renda mensal per capita varia de R$ 291 a R$ 1.019. Ou seja, se a soma dos salários e rendimentos de quatro pessoas de uma família superar R$ 1.164 por mês, todos serão considerados de classe média.
Já para o Centro de Políticas Sociais da FGV do Rio, é de classe média a pessoa que faz parte de uma família cuja renda total varia de R$ 1.200 a R$ 5.174.
Márcio Pochmann, ex-presidente do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e candidato do PT à Prefeitura de Campinas, fica de cabelo em pé quando ouve essas cifras. Para ele, definir a classe média a partir da renda é uma deturpação dos conceitos sociológicos -correto seria dizer que houve no Brasil, nos últimos anos, um aumento da classe trabalhadora com a criação e formalização de empregos.
“A grande maioria dos empregos criados foi de no máximo um salário mínimo e meio, e no setor de serviços. No conceito de classe média, as pessoas estão em carreiras em que o aumento da escolaridade aumenta também a renda. São funcionários públicos, professores, bancários. Não é o que acontece no Brasil agora. Se a pessoa é motorista de ônibus, não adianta fazer um pós-doutorado que não terá um salário maior.”
Para Pochmann, que acaba de lançar o livro Nova Classe Média? [Boitempo, 128 págs., R$ 36] -assim mesmo, com interrogação no final-, há, por trás dessas classificações, componentes político-ideológicos.
“As reivindicações da classe média e da classe trabalhadora são muito diferentes. Quem vai lutar pelo SUS (Sistema Único de Saúde), quem vai lutar pela escola pública? Só a classe trabalhadora. A média vai brigar por reduções no Imposto de Renda”, afirma.
Isso, segundo ele, influencia na definição de políticas públicas e alimenta a discussão sobre o tamanho e as incumbências do Estado: maiores, em que a classe trabalhadora é maior, ou menores, em que a classe média é maioritária.
Critério Brasil
Para o sociólogo Amaury de Souza, coautor, com Bolívar Lamounier, de A Classe Média Brasileira: Ambições, Valores e Projetos de Sociedade [Campus, 192 págs., R$ 52,90], essa é uma discussão estéril e ultrapassada. Para ele, termos como classe operária ou trabalhadora não têm sentido no século 21.
“No século 19, quando Marx falava de classe trabalhadora, referia-se àqueles que apenas tinham sua força de trabalho para vender. E esse força era muscular. Isso tudo mudou. Nem no agronegócio a força muscular é mais importante. A questão é o cérebro, a qualificação.” Amaury diz que os conceitos mais bem compreendidos no mundo todo atualmente são os que separam a classe média dos pobres.
“A discussão relevante é sobre a permanência dessas pessoas que ascenderam à classe média. Temos que analisar qual o risco de elas voltarem a ser pobres. Isso vale para o Brasil e para o mundo, porque o crescimento da classe média é mundial e é um efeito da globalização.”
Os recém-chegados à classe média correriam mais riscos de deixá-la que os mais antigos porque, em geral, têm menos patrimônio, pouca escolaridade e pouco capital social, que é uma rede de amigos ou familiares com condições de ajudar em caso de dificuldades.
A discussão não fica apenas no campo político/sociológico. Acontece também entre aqueles que precisam definir como anunciar para atrair o consumidor A ou o B. A Abep (Associação Brasileira das Empresas de Pesquisa), que municia o mercado publicitário, está em busca de uma melhor definição econômica e social do brasileiro.
A associação utiliza hoje o chamado Critério Brasil, que combina itens como a posse de determinados bens (como TVs ou automóveis), estrutura da moradia (número de banheiros), presença de empregados na casa e o nível educacional do chefe da família. A população é, então, dividida em classes: A1 e A2; B1 e B2; C1 e C2; D e E. Mas há uma busca por entender melhor a classe A (pequena e muito heterogênea) e a C (enorme e também muito heterogênea).
Os professores Wagner Kamakura (da Universidade Duke, nos EUA) e José Afonso Mazzon (da USP) estão ajudando a Abep na busca de um novo critério. Eles acreditam que, para traçar um bom perfil de classe, é melhor analisar a maneira como a pessoa gasta do que os bens que possui.
Pelo mundo, há vários modelos de classificação, com inclusão de status profissional, grau de escolaridade e até aparência interna e externa da moradia. Na Alemanha e no Japão, por exemplo, a ocupação do chefe da família é um fator determinante. Em outros países europeus, conta também quantos anos de estudo essa pessoa possui.
Agências de publicidade como a WMcCann trabalham com critérios próprios. O que importa, no caso, é o comportamento do consumidor. Eles dividem a classe média em dois grupos. O maior lembra a população mais endinheirada dos anos 1980, quando adquirir bens significava status.
O outro grupo é chamado de “C Beta”. Esse está mais próximo de uma tendência moderna, de consumo consciente, com preocupações ecológicas, por exemplo. Se as classificações diferem, muitos dos desejos coincidem, e pesquisas mostram que a nova classe média se aproxima da velha.
Questionados sobre o que querem conquistar, seus membros elencam: uma casa para morar; uma casa para obter renda (aluguel); uma aplicação financeira; uma boa aposentadoria. O desejo de consumir é forte, principalmente entre os recém-chegados, mas aparece também o desejo de poupar e investir na educação, principalmente dos filhos.
Ambição
“Essa nova classe média é ambiciosa, empreendedora”, afirma Amaury de Souza. “Quer enriquecer e depender menos do Estado. Um dado bem positivo é que ela sabe quão importante é a educação e está investindo nisso.”
Alheia a toda essa discussão, Claudete Duarte, 24, autointitulada feliz pertencente à classe média, olhava vitrines na hora do almoço no Mais Shopping Largo 13, em Santo Amaro, numa tarde de maio. Inaugurado há pouco mais de um ano e meio, o centro de compras é um clássico exemplo de empreendimento para os recém-ingressados na classe média.
Quase a totalidade das lojas é pequena (de 12 a 25 metros quadrados) e tem decoração simples.São boxes de vidro, cheios de prateleiras móveis, cujo aluguel varia de R$ 3.800 a R$ 7.000 mensais.
Os sonhos dos emergentes estão lá: um quiosque expõe apartamentos à venda pela construtora MRV, especializada em habitações populares. Outro oferece panfletos da Unip (Universidade Paulista), um dos maiores grupos educacionais do país, com mais de 200 mil matriculados.
Com pais que não completaram o ensino fundamental, Claudete estuda administração em outra universidade, a Uninove, cujo campus na região foi inaugurado em 2008. Ela diz que sua vida melhorou muito nos últimos anos, e espera mais. Afirma que já teve sua fase consumista, mas conseguiu escapar de um mal cada vez mais comum entre brasileiros, o endividamento.
“Sei o que é ser pobre, bem pobre, e espero conhecer o que é ser rica. Nem precisa ser muito rica, um pouco rica já está bom. Daquele jeito que não precisa pensar muito em dinheiro, sabe?”
Indústria, comércio e os demais setores da economia, por interesses próprios, torcem por ela.