Vergonha mate-me, mas algum dia eu tinha que dizer o que vou dizer hoje: de vez em quando um leitor me observa gentilmente que eu repeti boa parte de uma crônica ou artigo já publicados. Geralmente nem confiro, porque sei que é a cruel verdade. Mas preciso defender-me um pouco, antes que me tenham em má conta e o jornal me dispense por vender serviço velho como novo. Na verdade, suspeito que já escrevi algumas vezes o mesmo texto, com alterações muito pequenas, para publicações diversas, em épocas diversas. Não dá para verificar, porque acredito que o total do que já escrevi para jornais e revistas encheria uma sala ampla até o teto, mas a suspeita é grande. Só que eu acho que mereço alguma indulgência, por parte dos mais rigorosos, que felizmente não parecem ser muitos.
A preliminar de minha defesa é a companhia mais que ilustre que me fazem muitos autores de dimensão universal. Shakespeare, por exemplo, não estava acima de repetir trechos inteiros de obras suas mesmo, ou meio surrupiadas de terceiros. Mais ainda, bonus dormitat Homerus, como escreveu Horácio, ou seja, até o bom Homero cochilava, embora, a bem da verdade literária, deva ser mencionado que Horácio se revelou indignado com os cochilos homéricos. Mas, de qualquer forma, se o grande Homero e o não menos grande Shakespeare (para não falar, como é obrigação baiana, em Ruy Barbosa, que, apesar de ter sido o homem mais inteligente do mundo em todos os tempos e discursar em todos os idiomas, também deu suas mancadinhas, que ninguém nos ouça) incorriam em seus deslizes, não seria a arraia-miúda que constituiria exceção, pelo contrário.
Hora do fechamento
Escrevo crônicas ou artigos, sem interrupção, praticamente desde que me enfiaram numa redação de jornal, aos 17 anos, na condição de foca, categoria que tinha um status semelhante ao de um recruta dos Fuzileiros Navais em início de treinamento, ou seja, obedecia a tudo e não mandava em nada. Não havia escola de jornalismo, nem os jornais costumavam dar cursos, de maneira que a formação era no tapa mesmo, em redações inacreditavelmente barulhentas e enfumaçadas, com todo mundo falando alto e as máquinas de escrever matraqueando sem cessar. Foca tomava trote, gozação e esbregue por todos os lados. Mulher, com exceção de uma colunista ou outra, que raramente era vista em pessoa, não trabalhava em jornal e a linguagem na redação, inclusive nas ordens e advertências, não costumava ser de alto nível.
Passei por alguns trotes, inclusive a tradicional gracinha da calandra. Calandra, que ninguém, muito menos o foca, sabia o que queria dizer, era o nome dado, pelo menos na Bahia, a uma prensa enorme e pesadíssima, usada na preparação das matrizes para a rotativa. Um veterano chamava o foca e dizia: “Meu filho, dê um pulinho aí à oficina, procure Seu Soares e diga a ele que eu mandei você buscar a calandra para trazer aqui.” O infeliz, morto de medo de falhar em sua primeira missão no jornal, ia lá, mas a calandra era mais pesada do que dois hipopótamos e Soares, que não era o rei do bom humor, recebia a mensagem e o mensageiro com um gesto e alguns impropérios que, sendo este um jornal da família, não posso descrever aqui. Eu não, mas houve um foca meu contemporâneo que chegou a tentar levantar a calandra.
E, enfim, aprendi a redigir (com três dedos) à máquina e iniciei minha formação. Peguei reputação de escrever sem muitos erros e isso me levou à primeira crônica, ainda antes, se bem me lembro, de completar dezoito anos. Não que me tivessem chamado para ser cronista, foi por causa de um buraco. As páginas eram diagramadas em papel e às vezes sobrava um “buraco” inesperado, um espaço em branco, sem nenhuma matéria para botar nele e com a hora do fechamento chegando. Um belo dia, aconteceu isso quando eu estava peruando a diagramação de uma página, para ver se aprendia (nunca aprendi). O chefe (hoje seria editor) dessa página me cutucou no ombro e ordenou:
– Leia esta matéria e faça um comentário para fechar esse buraco junto dela, qualquer coisa, pode ser até uma espécie de crônica, faça uma crônica.
– Mas eu? Eu nunca escrevi crônica, não vou acertar. Eu…
– Quarenta e quatro linhas – disse ele. – Pode ser umas duas a mais, duas a menos. Fecha às sete e meia.
Argumentos idênticos
Suei bastante, mas consegui e, no dia seguinte, sem assinatura, mas com algum destaque, lá estava meu texto. Aí deram para me requisitar para tapar buracos em tudo quanto era página e eu fui obedecendo às ordens. Daí a uns dois anos, as coisas evoluíram até o ponto em que eu fazia uma crônica diária, sobre problemas da cidade, uma coluna de humor também diária e um colunão semanal no suplemento literário, que eu também editava, tapando os buracos de todo o caderno ou com gravuras recortadas ou com artigos sob pseudônimo e até poemas. Eu não sabia diagramar e o diagramador era meu veterano desde o início – me pegou com o trote da régua de paica, que eu também não descrevo aqui porque é impróprio, mas perguntem a um jornalista coroa. Então, quando ele inventava que, em determinado buraco, não cabia uma gravura, só cabia um poema de tal tamanho, ou eu fornecia o poema ou ele dizia que, nesse caso, eu diagramasse toda a página ou caderno. Lembro um poeta ruinzinho, chamado José Luiz Ribeiro Neto. Eu mesmo, claro; a necessidade é triste.
Não que tudo isso seja justificativa, mas é pelo menos uma explicação. O consolo é que muita gente se esquece do que leu antes e outros até gostam de reler a mesma história ou rever os mesmos argumentos, com outras palavras. Mas não posso conter agora o receio de que esta crônica de hoje seja, ela também, a repetição de uma anterior. Cartas para o editor, por caridade.
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[João Ubaldo Ribeiro é jornalista e escritor]