Para quem não sabe, Matthew Chapman é bisneto de Charles Darwin. Mas ele não seguiu os passos do bisavô naturalista. Chapman é jornalista e cineasta e tem aparecido na imprensa nacional graças ao filme A Tentação, que entrou em cartaz na sexta-feira passada (10/8) nos cinemas brasileiros. Chapman escreveu alguns livros sobre fé e descrença, sempre tentando colocar a suposta razão materialista em oposição à suposta irracionalidade da religião. Isso explica a trama de seu novo filme: um triângulo amoroso e trágico entre o ateu Gavin (Charlie Hunnan), Shana (Liv Tyler) e seu marido religioso Joe (Patrick Wilson). Com seu filme, o cineasta não quer apenas entreter; seu objetivo é discutir, mais uma vez, fé e razão – ou pelo menos o que ele entende sobre essa discussão.
Em entrevista concedida ao portal UOL, Chapman explica que, com A Tentação, ele quis fazer um thriller sobre os dois lados opostos da fé americana. Ele diz que um “é secular, sofisticado e educado; e outro, que é bíblico, homofóbico, subjuga as mulheres e acredita que o Universo só tem dez mil anos de idade. E tem muita gente que acredita nisso nos EUA”. Note como a visão de Chapman é preta e branca, totalmente maniqueísta. Para ele, de um lado, estão os sofisticados e educados secularizados e, de outro, os religiosos homofóbicos, machistas e que acreditam no relato bíblico. Nada mais errado. Há gente secularizada que só pensa em consumo e diversão, explora pessoas a fim de alcançar seus alvos e não está nem aí para o bem-estar do próximo. Assim como há religiosos (eu diria que a maioria) que repudiam a homofobia (embora discordem do estilo de vida homossexual), o machismo e a violência de modo geral. (Detalhe: poucos criacionistas acreditam que o Universo tenha apenas dez mil anos.)
O cineasta ignora um espectro mais complexo
Chapman diz ainda que, “se a única coisa que está impedindo você de matar uma criança é porque Deus mandou você não fazer isso, você é maluco”. Mas eu pergunto: E se o motivo for o puro amor desinteressado implantado por Deus no coração humano? E o que dizer de religiosos que não apenas não matam crianças, mas dão a vida por elas? Chapman se esquece, como muitos outros ateus, que os regimes comunistas ateus levaram à morte muito mais gente – crianças, inclusive – do que distorções religiosas como a Inquisição, as Cruzadas e o terrorismo.
Para o bisneto de Darwin, “é óbvio que você não deve matar uma criança, você não precisa que alguém lhe diga isso”. Bem, ele devia ter dito isso – se pudesse, claro – para os espartanos que assassinavam crianças com defeitos e para os pagãos cananeus que as queimavam nos braços de um deus de metal oco e incandescente. Parece que para esses (e outros), o assassinato de crianças não era tão erradamente óbvio assim.
Chapman prossegue: “Se você analisar sociedades com menos envolvimento religioso, como Suécia e Escandinávia, os países tratam seus cidadãos melhor do que países como Irã, Iraque, Paquistão e Afeganistão, que fazem coisas atrozes às pessoas, a mulheres, crianças, artistas e homossexuais.” Já deu para perceber que o cineasta gosta de extremos e ignora todo um espectro mais complexo.
Opinião incendiada
O repórter do UOL perguntou a Chapman se ele acredita que o problema é a religião em si ou o fundamentalismo religioso e recebeu como resposta o seguinte: “Admito que, no fundo, acho que é a religião em si [essa é a questão dele]. Mas obviamente há tipos diferentes de religião que tem efeitos melhores ou piores nas pessoas. Há um autor chamado Sam Harris, que escreveu um livro chamado A Morte da Fé. Ele é ateu e diz que o ateísmo é apenas esclarecer as coisas para que você possa ter conversas melhores. Em outras palavras, há problemas reais como pobreza, maldade humana, crueldade, além de problemas planetários, como aquecimento global. Existem problemas reais. E você não pode achar soluções para eles se ainda está falando sobre visões que começaram há dois mil anos. Que a Terra é plana [nada mais falso, de novo], homossexualidade é um pecado, mulheres adúlteras devem ser apedrejadas, isso é tudo tão primitivo que impede nosso avanço.” Curiosamente (e Chapman parece ignorar também isso), as maiores ações humanitárias que visam a resolver “problemas reais” são promovidas justamente por movimentos religiosos. E agora?
A certa altura da entrevista, o cineasta revela sua maior preocupação: “O motivo que me dá muita vontade de falar sobre A Tentação para o Brasil – afinal, eu conheço o país muito bem – é que vocês têm um crescimento muito grande de fundamentalistas cristãos e evangélicos e eu acho que isso é algo [com] que é preciso tomar cuidado, para que eles não ganhem muito poder.” Note como ele aponta a arma para os “fundamentalistas” cristãos brasileiros – termo cada vez mais associado aos cristãos que creem na literalidade do relato bíblico da criação. Acho que vou comprar um colete à prova de balas…
Chapman acha que o Brasil está no caminho certo, progredindo em várias áreas, mas ressalva: “Seria uma pena permitir que o fundamentalismo cause um retrocesso. Seria muito triste.” Falta pouco para a opinião pública em geral – incendiada por gente como Chapman – culpar os “fundamentalistas” pelos retrocessos e mazelas da sociedade.
O bisneto foi mais longe
Sobre o filme, ele diz que pediu para o ator Patrick Wilson “ler muito a Bíblia”. “Eu falei para ele de pessoas que eu conheci. O personagem dele é baseado principalmente em uma pessoa que eu conheci no Tennessee. Quis que ele chegasse em um nível que olhasse para alguém e dissesse: ‘A menos que você faça o que eu faço, você vai queimar no inferno para sempre’. E para chegar a esse ponto e sentir isso de forma tão forte, é muito difícil. Eu ajudei, mas ele é um ator brilhante.” Azar o de Chapman (e dos que vão assistir ao filme) que ele não tenha deparado com um verdadeiro cristão. Azar de todos que o cineasta tenha feito mau jornalismo e tomado o todo pela parte. Quem disse que todos os cristãos pensam como o arremedo que ele conheceu? Quem disse que o personagem de Wilson representa o cristianismo?
Segundo Chapman, depois de assistir ao filme muitas pessoas nos Estados Unidos o procuraram e disseram que conheciam alguém como Joe (personagem fanático interpretado por Wilson). “Muitas mulheres falaram que se encorajaram muito com o personagem da Liv Tyler porque viveram com um homem como Joe e disseram que era muito difícil escapar”, disse ele. Realmente, casar-se ou estar casado com um fanático (religioso ou ateu) deve ser “barra” – qualquer fanatismo atrapalha qualquer relacionamento. Mas e o que dizer das pesquisas segundo as quais os casais religiosos são os mais felizes? A verdadeira religião bíblica equilibra a vida, pois influencia igualmente os aspectos mental, físico, emocional e espiritual. A prática da verdadeira religião é uma bênção para os relacionamentos, pois enfatiza o amor altruísta, o respeito e a mútua submissão de um cônjuge ao outro e de ambos a Deus.
Sei não, mas acho que Chapman é mais darwinista que o próprio bisavô! Mas uma coisa é certa: o bisneto foi mais longe que seu antepassado – Darwin era agnóstico (não tinha posição exatamente definida sobre Deus), Chapman é ateu (portanto, já decidiu crer na descrença e pregá-la). Esses netos…
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[Michelson Borges é jornalista e mestre em teologia]