Escrevi este artigo tão logo chegou ao fim o primeiro dia (2 de agosto) de sessão do Supremo Tribunal Federal para apreciar a Ação Penal 470, a designação técnica para o “mensalão”. Para os fins deste artigo, não precisarei levar em consideração o desdobramento do processo, que pode ser longo e acidentado.
Depois de horas à frente da tela do computador, saio com uma convicção: todos os alunos de direito que frequentam as escolas superiores do Brasil deviam assistir à gravação. Foi uma magnífica aula magna. É uma lição intrínseca de direito.
Mesmo sem ter o mesmo rendimento dos já iniciados nos segredos e especificidades do direito, qualquer cidadão sairia enriquecido da sessão. É uma pena que o ex-presidente Lula tenha insistido em comunicar aos jornalistas, através de sua assessoria, que preferiu sintonizar seu aparelho nas olimpíadas de Londres e em uma novela da TV Globo. A sessão devia ser programa obrigatório para todos os homens públicos brasileiros.
Mais uma vez, confiante no seu carisma e na sua individualidade prodigiosa em um universo de sete bilhões de almas humanas sem o mesmo brilho, o ex-presidente dá péssimo exemplo. Se sua consciência não lhe obrigasse a acompanhar o julgamento, sua condição especial de cidadania lhe impunha essa tarefa. Ele também aprenderia, ainda que precisasse, antes, aprender a aprender.
Conexão de causas
Mas tudo bem. Na parte propriamente técnica da sessão inaugural do STF do processo do “mensalão”, o grande personagem foi o ministro Ricardo Lewandowski. Posso falar dele com algum conhecimento de causa. Fomos colegas e amigos no curso de graduação da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, entre 1969 e 1971.
Ricardo era um aluno aplicado e correto. Mas parecia um tanto deslocado no curso. A sociologia era, por definição, uma ciência posta sob suspeita pelo regime militar. Com o AI-5, dos últimos dias do ano libertário de 1968, tornou-se definitivamente subversiva, criminosa mesmo.
Mas nós teimávamos em desafiar o interdito estatal e as ameaças do aparelho repressor oficial. Teimávamos em pensar, questionar, criticar e negar. Vários de nós pagariam caro por encarar esse desafio.
Ricardo, de uma família de imigrantes europeus, filho de um industrial, dado a hábitos aristocráticos, era um conservador no meio da turba. Mas, ao menos comigo, o diálogo estava garantido: ambos gostávamos de estudar, nos deixávamos levar pelo exercício do raciocínio e prezávamos a troca de ideias de matriz tipicamente acadêmica. Era evidente que Ricardo jamais seria um sociólogo, o que viria a se confirmar. Ele se desviou para sua vocação: o direito.
Passei muito tempo desligado dele. Vim a ter notícia a seu respeito quando foi promovido ao desembargo no Tribunal de Justiça de São Paulo. E só voltei a manter contato ao lhe enviar uma mensagem de parabéns quando chegou ao STF. Senti-me honrado na condição de seu colega de escola. Ele chegava mais alto do que todos nós.
Falava-se que essa ascensão se devia à sua intimidade principalmente com a esposa de Lula, muito antes de ela se tornar primeira dama. Passava direto para a cozinha e lá conversava com o casal, ao qual devia dar assistência. Sem dúvida essa ligação pesou para a sua indicação ao STF, talvez até tenha sido decisiva. Mas não lhe faltariam méritos para ir além da cúpula do judiciário paulista, se pudesse ter acesso a outro tipo de seleção.
Pensava nisso e em muito mais enquanto ouvia a leitura do seu voto sobre uma questão de ordem apresentada pelo advogado de um dos réus, o dono do Banco Rural, a principal fonte de financiamento identificada do “mensalão”, o ex-ministro da justiça e factótum nos bastidores políticos, judiciais e tudo mais, Márcio Tomaz Bastos (uma versão atualizada de Saulo Ramos, bem menos culto do que o amigo de Sarney, mas com resultados melhores).
O voto de Lewandowski era longo, com surpreendentes 53 páginas, minucioso, lógico, formal, bem fundamentado. Deixando de lado suspeitas sem comprovação sobre um possível acerto prévio entre o ministro e gente do PT no poder, a quem ele deveu sua indicação para o cargo mais alto da carreira jurídica no Brasil, impossível não ter do seu parecer uma impressão muito boa. Mas apenas se dele fizéssemos uma análise intrínseca, limitada à sua coerência interna. Quando abordado com senso crítico, num contexto mais amplo, o que parecia sólido se dissolvia no ar, virava farelo.
A questão de ordem, por extemporânea, devia ser rejeitada de imediato. Ela era, na verdade, uma preliminar sobre a violação de garantia constitucional e de tutela em tratado internacional das Américas, celebrado em São José da Costa Rica, sobre o duplo grau de jurisdição como garantia inalienável de qualquer pessoa e a primazia do juiz natural no devido processo legal.
Como tal, a questão estava preclusa. Em pelo menos duas ocasiões, o colegiado do STF, à unanimidade, não acolhera os argumentos, com os quais as defesas dos réus queriam o desmembramento do processo, unificado a partir da denúncia da Procuradoria Geral da República por conexão de causas ou continência. Não se tratando de questão nova, a iniciativa do ex-ministro de Lula não podia ser questão de ordem. Era preliminar, já julgada e vencida.
Crítica pública
Toda a estrutura analítica levantada por Lewandowski no apoio à pretensão do réu desmoronou quando a ministra Lúcia Weber apresentou o seu voto, com elegância, civilidade e tal tranquilidade que, a princípio, parecia que ia acompanhar o revisor divergente. Começando por elogiá-lo, ela procurou preservá-lo e garantir a continuidade de suas relações com seus pares de tribunal.
O ministro fora atacado pessoalmente, como desleal, pelo seu colega (e relator) Joaquim Barbosa, revoltado pela reapresentação de matéria vencida, que talvez buscasse protelar ainda mais o andamento do processo para favorecer a prescrição dos crimes. A investida deselegante de Barbosa foi retrucada com ênfase ainda maior por Lewandowski. Sinal positivo para o futuro: ambos ficaram a partir daí isolados na corte.
Através das sendas abertas pela ministra, vieram seus colega, com a missão de não deixar pedra sobre pedra na construção “lewandowskiana”. Tangenciando a questão prejudicial da preclusão do direito, os ministros seguintes examinaram o mérito do voto do revisor. Ao final dessa taxonomia analítica, os fundamentos da manifestação foram dissipados e atirados ao vento, que os dispersou pela fugidia memória.
Mesmo que limitada, a dupla jurisdição num tribunal finalista, como o STF (cujos atos não podem mais ser revistos, se não por ele mesmo, quando cabível) pode ser exercida através de embargos infringentes, caso a decisão – tomada contra o réu – não for unânime. Nesse caso, é admitido até o reexame das provas e o mérito da questão, como se fosse procedido um novo julgamento, no qual não podem funcionar nem o relator nem o revisor do momento anterior. Tem que ser designado um novo ministro para o feito.
Prevalecendo a conexão em função do foro privilegiado, a atração dos demais réus para serem julgados pelo STF serve à justiça porque o colegiado pode examinar em conjunto todas as provas e trafegar entre o direito penal e o cível, o que seria impossível na hipótese de devolução dos 35 processos ao juiz monocrático de origem.
Isso já aconteceu durante o inquérito, que forneceu os elementos de prova para a apreciação dos ministros do STF. Desagregar os autos agora seria uma insensatez, que só se justificaria se o inverso constituísse realmente uma iniciativa ilegal, antijurídica.
A posição assumida por Lewandovski, se antes podia ser defensável, se tornou melancólica, fantasmagórica, um esqueleto a merecer a sepultura num armário indevassável. O ministro se tornara anacrônico, antediluviano.
Todas as razões técnicas apresentadas pelos juízes do STF podiam ser deixadas de lado quando o ministro Cezar Peluso começou a declarar o seu voto. Com um coloquialismo inacessível à maioria dos seus sisudos pares (mas sem o tom teatral de Marco Aurélio de Mello, que às vezes derrapa para o padrão de ópera bufa), Peluso declarou que, na véspera, ao chegar mais cedo à sua residência, assistiu ao noticiário da televisão.
Alguém, em determinado programa, observou, com calma e bonomia, que se um novo julgador recebesse os autos do “mensalão” e pudesse ler as 50 mil páginas do processo como um locutor de turfe (que fala com mais velocidade do que o cavalo galopa), levaria um ano para tomar pleno conhecimento das peças contidas nos autos. Ao se sentir em condições de instruir o processo, já a maioria dos crimes teria prescrito. Se não todos eles. A punibilidade dos réus estaria extinta.
A tese do juiz natural, que seria o juiz isolado nos casos dos réus sem privilégio de foro (concedido aos servidores públicos e políticos arrolados na ação), e que são três deputados federais dentre os 38 réus, era uma porta de emergência contra a realização da justiça. Mesmo que fosse uma tese aplicável ao caso, dar-lhe a relevância que lhe concedeu Lewandowski significaria inverter a hierarquia do processo judicial.
Significaria elevar a primazia o que é mera formalidade e a acessório o que é substancial, subvertendo as ponderações. Muitos dos que querem se livrar de suas responsabilidades em casos judiciais de maior gravidade, como esse do mal definido “mensalão”, recorrem a preciosismos formais para livrar-se do encargo ou mesmo para ajudar réus de maior envergadura. Por esse desvio, Lewandowski conduziria maus brasileiros ao promontório da impunidade, que tanto faz mal à justiça e ao Brasil.
Felizmente esse objetivo não foi alcançado, numa sessão que merece ser transformada em aula obrigatória para todos os brasileiros que pretendem seguir a carreira jurídica. E se tornar cidadãos plenos em um Brasil melhor do que o do “mensalão”.
Não foi uma sessão linear nem manteve sempre um nível elevado, Mas ofereceu a quem a assistiu uma esperança: de que o julgamento seguirá um padrão técnico, através do qual chegará à verdade e fará justiça. Ou então a confiança nas instituições, incapazes de sustentar tecnicamente suas decisões e se expor à crítica pública, estará definitivamente abalada. E a democracia se tornará ociosa – se não perigosamente inútil.
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Mensalão: depois do julgamento, um Brasil mudado. Talvez para pior
A primeira campanha de Luiz Inácio Lula da Silva à presidência da República custou um milhão de reais. A vitória de Fernando Collor de Mello saiu por 100 vezes mais porque dos R$ 160 milhões arrecadados pelo seu tesoureiro, Paulo César Farias, “só” R$ 100 milhões foram gastos. Foi a maior “sobra de campanha” de todos os tempos. Mesmo porque foi a primeira vez que esse tipo de receita foi documentado. E acabou se tornando de domínio público o que antes era feito com sigilo e nos bastidores.
Collor mandou PC Farias administrar esse fundo, absolutamente clandestino, de R$ 60 milhões, o mais desejável dos caixa 2 que alguém podia imaginar. O grande escândalo que levou à desgraça de Collor resultou da desenvoltura dos saques nesse caixa. Ele já existia antes, mas com PC Farias assumiu um tamanho inédito. Passou a ser uma fonte de dinheiro sem registro notável.
Lula e sua equipe, depois de três eleições frustradas em 12 anos de muita experiência, estavam prontos para vencer a disputa de 2002. Duda Mendonça, o melhor dos marqueteiros, foi contratado para polir o “Lulinha paz e amor”, que pôs fim à reação da classe média, multiplicada pela sua capacidade de influir sobre a opinião pública.
Duda custou R$ 15,5 milhões (incluindo serviços anteriores, seu faturamento ultrapassou R$ 40 milhões). Mas não era o único marqueteiro na campanha. João Santana faturou quase 14 milhões. Só com os dois, o comitê de Lula gastou 30 vezes mais do que em toda campanha de 2009. De onde veio esse dinheiro? Como foi distribuído? Quem o distribuiu? Quem o recebeu? Como essas despesas foram lançadas?
Lição de Stanislaw
Estas são as perguntas fundamentais por trás do “mensalão”, uma história que avança há sete anos. Tendo começado por denúncias anônimas ou assumidas, teve julgamento político no Congresso Nacional e poucas condenações. Chegou agora ao Supremo Tribunal Federal. Na denúncia, o procurador-geral da república, Roberto Gurgel, diz que se trata do “maior crime político da história da república”, perpetrado por uma “sofisticada organização criminosa”.
Ela se reparte em três quadrilhas. A política, comandada por José Dirceu, a segunda figura mais importante no PT depois de Lula. A de captação de recursos, à frente o publicitário Marcos Valério. E a financeira, liderada pela presidente do Banco Rural, Karla Rabello.
O chefe do Ministério Público Federal diz que elas agiam entrosadas. Primeiro para pagar as contas eleitorais do PT e de seus principais aliados políticos. Depois, já atuando de forma permanente, para comprar vitórias do governo na votação de iniciativas do seu interesse no parlamento. O dinheiro, que fluiu inicialmente através de instituições privadas, passou a sair dos cofres públicos quando Lula assumiu a presidência.
O relatório de Gurgel tem 123 páginas. É contundente. Os autos do processo são formados por 233 volumes com quase 50 mil páginas, nas quais aparecem 700 personagens, dos quais 38 foram denunciados à justiça como réus. O Congresso, que concluiu pela prática dos crimes e forçou alguns dos seus integrantes a renunciar, além de cassar outros, concorda. Três procuradores-gerais sucessivos partilharam a mesma convicção. O ministro relator no STF, Joaquim Barbosa repetiu suas afirmativas.
A defesa dos réus concorda que um crime foi praticado: o caixa 2. Nega todos os outros delitos. O crime eleitoral está prescrito. Se só houver esse indiciamento, mesmo que haja condenação, não haverá presos. Ninguém irá para a cadeia. Mas não irá, sustentam os advogados dos acusados, porque não existem provas das demais práticas criminosas, apenas ilações e algumas evidências, insuficientes para definir os tipos criminais.
Ainda que a denúncia fosse procedente, ela exagera. Não se trata, a rigor, do “maior crime político do Brasil”. Mas talvez seja o mais grave da atualidade. Suas consequências, estas, sim, podem ser ainda mais desastrosas. Podem pôr fim ao que restava de preocupação ética na prática política brasileira, que, em humor tornado negro, daria razão à vovó Zulmira, personagem antológica criada por Stanislaw Ponte Preta: se a moral não vai ser restaurada, então que todos nos locupletemos.
Sem perguntas
Depois de três derrotas na disputa pelo poder, Lula e o PT concluíram que só venceriam se deixassem de ser o que vinham sendo: uma alternativa à esquerda para o país, uma novidade, uma mudança profunda, talvez radical. O que era para ser uma tática de momento, sem a qual seria impossível vencer a quarta tentativa, se tornou a prática corrente de Lula e do partido colocado ao seu reboque, como sua mera extensão.
Em algum momento, seus dirigentes imaginaram que a mão suja podia ser lavada logo depois da vitória. Mas era preciso sujá-la sem pudor para derrotar o PSDB de Fernando Henrique Cardoso, mesmo que seu candidato fosse o indigesto José Serra. Ninguém contesta, nem o petista mais vermelho, que o partido distribuiu clandestinamente R$ 56 milhões entre o final de 2002 e o primeiro semestre de 2005, R$ 28,5 milhões para o próprio PT e o restante entre PL, PP, PTB e PMDB.
Todo esse dinheiro seria para quitar as dívidas pendentes num orçamento que perdeu seu senso de realidade quando a hipótese de vitória se tornou forte. Tudo foi avalizado, até o que não podia ser declarado. Por isso o pagamento de Duda foi para um paraíso fiscal nas Bahamas. Por baixo dos panos e atrás dos biombos outras contas foram acertadas, no melhor estilo mafioso.
Uma vez equilibrado o fechamento do caixa 2, o PT podia voltar a ser o campeão da ética, da honradez, da defesa intransigente de programas? Não. Pelo simples detalhe: já deixara de corresponder a essa imagem de propaganda. O PT perdera a virgindade a partir das administrações regionais. Formara caixa 2, desviara sobras de campanha, negociara decisões, estabelecera ligação com gente escusa e colocara ao alcance de alguns dos seus dirigentes um poder que eles jamais imaginaram que um dia poderiam ter.
Os petistas ainda tinham a síndrome de Harry Porter. Pareciam convencidos de que a capa do passado ocultaria seus mal feitos. Podiam então se lançar à desonra certos de que ninguém os veria. Teria diante dos seus atos o pior dos cegos, o que se recusa a ver. Invisíveis, os petistas no poder davam-se ao desfrute de repetir as práticas que condenavam quando na oposição. Não importava: o dinheiro ilícito e a prática imoral eram meios escusos que se legitimavam pelo seu fim, o de colocar no comando do país as melhores pessoas, o melhor partido, o melhor programa. Uma vez alcançado o fim, o meio que o negava se extinguiria. A classe desfavorecida havia chegado, finalmente, ao paraíso.
No meio dessa engrenagem toda houve gente que se assustou. Uns saíram do jogo. Outros o denunciaram. O caso mais exemplar foi o do ex-prefeito de Santo André, Antônio Celso Daniel. Ele constatou que o dinheiro sujo não estava indo apenas para o caixa 2, entidade remota que com o PT se transformou em mecanismo burocratizado, absorvido, “normalizado”. Alguns petistas estavam colocando o dinheiro no próprio bolso. Estavam roubando.
Celso Daniel foi assassinado. Sua família, que denunciou a inspiração política do crime, teve que fugir do Brasil, se exilando na França. Voltou recentemente com o mesmo discurso. E com o mesmo efeito prático: nenhum. A síndrome de Harry Potter o inutiliza em relação ao PT. Lula ainda tem o reforço do efeito teflon: nenhuma acusação gruda nele.
Mas tantas foram as vilanias que a originalidade do “mensalão” na sua fase judicial é o surgimento do acusado que quer ser réu. Não pretende o benefício da delação premiada: admite que cometeu o crime, desde que o crime seja o eleitoral, do caixa 2, que o manterá longe da cadeia, logo lhe permitindo retornar à condição de primariedade, com a qual sua vida prosseguirá risonha e franca.
O código para essa saída eficaz foi dado por Lula na famosa entrevista semiclandestina dada em Paris a uma jornalista de aluguel (e de ocasião): tudo isso é caixa 2, prática ancestral. É um deslize dos “aloprados”, do mesmo gênero que mereceu a tolerância de outro presidente da república, o general Ernesto Geisel, em relação aos “radicais, mas sinceros”. Nada que um carão não resolva, fazendo o rebelde se enquadrar de novo e voltar a ser uma boa pessoa.
Assumindo grotescamente essa culpa perante a justiça, ardentemente desejosos de que venha essa condenação segmentada, os réus do “mensalão” sepultaram a moral e a ética pública. Se os santos pecaram e proclamam seu pecado, aos pecadores tudo está autorizado.
O mais exemplar dos atores dessa ópera bufa, Delúbio Soares, o PC Farias de Lula, é “uma pessoa honesta, no sentido de que não arrecadou dinheiro oficial ou por baixo dos panos,para aproveitar uma parte”. É o que assegura A outra tese do mensalão, livro de Antônio Carlos Queiroz, Lia Imanishi Rodrigues e Raimundo Rodrigues Pereira (159 páginas, Editora Manifesto), que acaba de ser lançado para se opor ao prejulgamento da imprensa dominante, dos inimigos do PT e de um poder judiciário manipulado.
O pecado (venial, é claro) de Delúbio é “seu gosto por bons vinhos e charutos cubanos”. Para um simplório professor de matemática de escola de ensino médio (da qual foi recentemente demitido, por abandono do emprego) em Goiás, cabe perguntar como o tesoureiro de sempre de Lula formou esses gostos e como o mantém. Recebendo presentes de amigos? Naturalmente, ele acredita em jantar grátis.
Seu chefe, que morou por anos em casa alugada que o compadre lhe cedeu, com tudo mais para uma boa vida (charutos e vinhos inclusos), também. A partir do exemplo superior, muitos petistas seguiram atrás, sem perguntar pela origem dos fundos que sustentam esses novos hábitos.
Desfecho da novela
A “outra tese”, que os jornalistas da revista Retrato do Brasil apresentam, com muitos argumentos em seu abono, pode ser tão defensável quanto a primeira tese, ou até mais, já que os acusadores dos integrantes das três quadrilhas reunidas pela “sofisticada organização criminosa” exageraram na ênfase e extrapolaram nas interpretações. A base factual é menor do que a conclusão a que esses acusadores chegaram.
É pouco provável (embora não de todo impossível) que Lula e o PT precisassem criar uma propina mensal para comprar votos de parlamentares para seus projetos. Para comprar votos, têm mais eficácia obras favoráveis e emendas parlamentares aprovadas, o que o PT faz à larga desde que assumiu o Palácio do Planalto. E é muito mais dinheiro do que aquele que pode ter saído do Banco do Brasil através do fundo Visanet. Sem o risco de poder ser classificado de criminoso. Imoral, sim. Antiético, sem dúvida. Mas é sempre assim no alto do poder. O PT apenas repete os vícios, já sem qualquer resquício de pudor.
Daí a concluir que o Supremo Tribunal Federal se transformou num “tribunal de exceção” ao julgar o “mensalão”, como fazem os três jornalistas da “outra tese”, vai uma distância muito grande. Os exageros de lado a lado servem, no fim, aos que aceitam que alguma verdade seja dita e, por causa dela, alguém seja punida. O cego-surdo por conveniência mais famoso do Brasil.
Mas não que a revelação chegue à verdade por inteiro e alcance todos os envolvidos. Ou então, depois de José Dirceu, derrubado pela denúncia de Roberto Jefferson (que jamais podia assumir o papel de mocinho num enredo decente), teria que ser atingido quem completava a cadeia de comando: Luiz Inácio Lula da Silva.
Por isso, qualquer que venha a ser o desfecho dessa novela, depois dela o Brasil, sob a aparência de uma saúde reforçada, terá um organismo debilitado por um mal invisível: o acerto de contas entre os personagens principais, mas invisíveis. Ou porque sofrem da síndrome de Harry Potter. Ou porque sempre foram invisíveis.
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[Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)]