As sessões do Supremo Tribunal Federal para julgar a Ação Penal 470, conhecida como mensalão, revelam muito mais da natureza humana que dos autos do próprio processo. É impressionante o quanto devemos ao veículo televisão para conhecer melhor como são julgados em nossa instância máxima judiciária os temas que incendeiam a imaginação da grande imprensa e revelam alguns de seus inumeráveis esforços e estratégias para alçá-los ao ápice dos interesses da opinião pública.
Sempre que pensamos em um tribunal de justiça, logo nos vêm à mente a ideia de ambientes solenes, pessoas sisudas, trajes pomposos, vocativos e tratamentos pessoais marcados por explícita afetação, linguajar alguns tons acima do entendimento dos meros mortais. É isso o que surge em toda a sua inteireza nas sessões já realizadas para o “julgamento do século”, como dizem algumas revistas semanais, vociferam comentaristas de política em rádios que só tocam notícia, e as repetitivas colunas da página 2 de nossos jornais de maior circulação diária.
No entanto, temos um convite à desconstrução desse imaginário. É que nem tudo o que parece, realmente é. E não importa todo o esforço para dotar aqueles 11 seres humanos com superpoderes na administração da justiça. Vestem suas becas negras e seus trajes pessoais chegam mesmo a se confundir com o mobiliário austero, porém moderno, do plenário do STF.
No fundo, são não mais que seres humanos deixando vir à superfície do ser suas mais expressivas formas de humanidade: demonstram impaciência, dirigem palavras ríspidas uns aos outros, chamam de excelência a vítima de seus iminentes ataques verbais, adoram expor à fartura seus sofisticados conhecimentos linguísticos, carregam na impostação de voz como se fossem atores se apresentando diante de um júri artístico.
Sóbrias, discretas
Nas muitas horas que passei diante da telinha mágica da TV Justiça não raras vezes senti-me observador atento de uma espécie de Big Brother Brasil, com 9 homens e 2 mulheres divididos em dois distintos grupos, como se tivessem escolhido em qual quarto dormir após a rotina diária. A troca de farpas é muito comum, o excesso de zelo respeitoso com o tratamento mais comum ainda.
Neste BBB da TV Justiça temos alguns tipos clássicos:
>> O que tenta agradar a todos, sempre disposto a responder “Sim” a todas as demandas, transformando vinho em água e esta em azeite, de forma a que todos saibam que com ele pode contar: o ministro Ayres Britto. Age como o líder de toda a temporada do julgamento: concede a palavra aos pares e priva da palavra os advogados de defesa.
>> O que é chegado a um destempero, a um chilique, a uma boa troca de insultos: ministro Joaquim Barbosa. Age como se estivesse sempre num confessionário virtual fazendo o que mais aprecia: emitir condenações a torto e a direito.
>> O que é propenso a não concordar “de primeira”, valorizando sua posição no tabuleiro do julgamento e não disposto a levar desaforos para casa: ministro Ricardo Lewandowski. Age como defensor dos pobres e desvalidos, dos bispos de olhos vermelhos e das viúvas sem porvir, exatamente como na música de Chico Buarque “Geni e o Zepelin”.
>> O que é afeito a carregar no clima de superioridade sobre os pares, afeito a polêmicas, concedendo-se o direito de estar a alguns poucos metros do sobre-humano: ministro Gilmar Mendes. Age de forma impulsiva, desde a forma de afastar a cadeira para sentar até o jeito enfastiado de escandir duas ou três frases a título de “declarar precluso o assunto”.
>> O que se sente talhado para apresentações solo no Scala de Milão, no Opera em Paris, cheio de sensibilidade, tão comuns às divas do bel canto: ministro Marco Aurélio Mello. Age como franco atirador, é rápido no gatilho verbal e sua metralhadora giratória simboliza sempre a do “estado-da-arte”.
>> Os que falam demasiado, são prolixos e buscam colonizar a cabeça dos demais, invertendo o preço do silêncio para prata e deixando o ouro para a palavra: ministros Celso de Mello e Cezar Peluso. Agem como se a vida não passasse de superlotado auditório e, eles, personificassem ninguém menos que Rudolf von Ihering e Norberto Bobbio.
>> Os que guardam obsequioso respeito ante a sapiência de seus pares devido à sua relativa pouca idade e baixa quilometragem no ofício de julgar: Luiz Fux e Dias Toffoli. São jovens e boas-pintas e agem como coadjuvantes em superprodução da Broadway. Nada de prolixidade, muito menos contundência nas posições assumidas.
>> As que trazem um colorido às sessões, são elegantes, sóbrias, discretas, e quando falam realmente têm o que falar: ministras Rosa Weber e Carmen Lúcia. Agem como pessoas comuns, sem superpoderes e sempre trajando suas atitudes com as virtudes do bom senso e da razoabilidade.
Sabedoria e verdade
As câmaras da tevê captam as expressões de ironia, tédio, enfado, superioridade, irritação e até indiferença. Infelizmente nós telespectadores não observamos gestos de cortesia e amabilidade genuínos entre os membros da Suprema Corte. Na falta dessas duas virtudes que tanto engrandeceriam um colegiado, observamos as fórmulas de tratamento forçadas, sem alma, palavras ditas como se estivessem presas nas gargantas aos seus pilotos automáticos: “Vossa Excelência”, “O eminente colega”, “Meus nobres pares”, “Sua Excelência, o competente e imparcialíssimo relator”, “Sua Excelência o ministro revisor, dono de sofisticados conhecimentos jurídicos”.
Em algumas situações pensamos que mesmo a leitura de duas frases de qualquer bula de remédio soaria mais convincente que a verborragia jurídica usada apenas para não ferir a vaidade ou os brios desses onze mortais, porém ilustres mortais togados.
Nos últimos anos percebi quão grande é a distância entre palavra e intenção, e entre a intenção e o gesto. As instituições conseguem manter sua aura de solenidade, respeito, e a sempre perseguida condição de estar “acima do Bem e do Mal” somente quando distantes do meio fio regulamentar que os separa do populacho, da convivência regular com a sociedade.
A transmissão das sessões na TV Justiça aproximam o povo da Corte. E, com isso, desfaz-se o mistério da instituição pairando como avatar sagrado sobre os destinos de todos nós. Estas transmissões contrariam frontalmente Caetano Veloso, nosso conhecido polemista baiano: “De perto ninguém é normal”. De perto é que Suas Excelências parecem normais, normais até demais.
O certo é que vendo os juízes do STF em meio a um julgamento logo percebemos quanta sabedoria e verdade estão entesourados no aforisma de Sua Excelência Friedrich Wilhelm Nietzsche: “Somos humanos, demasiado humanos”.
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[Washington Araújo é jornalista e escritor; mantém o blog http://www.cidadaodomundo.org]