Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

A outra História

Era uma vez em uma terra muito distante, para além do Mar Tenebroso, vivia um príncipe belo, justo e valente… Ahã… bem, nem tão valente assim, e quanto a ser justo, bom, diga-me você, caro leitor, ao final deste artigo, se este jovem príncipe não lhe parece um protótipo do político contemporâneo. Mas o que importa? Contos de fada são assim, manifestações do real travestidas de fantasia. Mas continuemos.

Corria o ano de 1822 e em uma bela tarde de setembro o pândego D. Pedro, príncipe regente português, compelido a “responder a mais um chamado da natureza” – fruto farra da noite anterior, daquelas de fazer inveja ao próprio deus Baco –, “quebrava o corpo” às margens do córrego Ipiranga quando o correio real, Paulo Bregaro, chega trazendo um maço de cartas para sua alteza. Quando a correspondência lhe foi entregue, o regente ainda se recompunha do ato fisiológico. Indignado com o conteúdo das missivas, o príncipe amassa e pisoteia as cartas. Tomado de vaidosa fúria, o regente sobe em sua besta baia e proclama, altivo: “Por meu sangue e pela minha honra, juro fazer a separação e a liberdade do Brasil”!

Apesar da diarreia e das cartas das cortes portuguesas, fora naquela semana que o fauno D. Pedro conhecera a mais famosa de suas amantes: Domitila de Castro Canto e Melo, a futura marquesa de Santos, com a qual viveria sete anos de uma paixão tórrida e teria com ela ao menos quatro dos 26 filhos, entre legítimos e ilegítimos, com dezenas de mulheres diferentes. A confusão era tanta que D. Pedro chegou a criar um sobrenome, “Brasileiro”, para distinguir os bastardos dos legítimos.

A verdade nem sempre é agradável

Assim, aos 24 anos, começava a história do monarca português importado para ser rei do Brasil por recomendação de seu pai, D. João VI, rei de Portugal (“se tiver que ser – a independência –, que seja pelas tuas mãos, meu filho, que me há de respeitar”). Após debelar uma breve resistência contra (!) a independência no nordeste com um exército mercenário e chefiado pelo inglês lorde Cochrane, D. Pedro I consegue um empréstimo junto à mesma Inglaterra no valor aproximado de 2,5 milhões de libras para pagar a Portugal uma indenização por nossa “independência”. Dinheiro este que Portugal também não veria, pois seria usado para sanear o abismo das dívidas lusitanas com a rainha dos mares.

D. Pedro impõe ao país e àqueles que o apoiaram no histórico Dia do Fico – 9 de janeiro do mesmo ano – uma virulenta Constituição censitária e absolutista. Restringe com violência a imprensa, chegando aos extremos, como o assassinato do jornalista de oposição Libero Badaró. Pune exemplarmente as reações ao seu despotismo, como no episódio da Confederação do Equador, quando Frei Caneca foi morto por arcabuzamento (embora os livros de história adorem simplificar a morte do mesmo por fuzilamento, o que seria impossível, uma vez que o fuzil ainda não existia).

A truculência e a tirania, a vida devassa internacionalmente conhecida, causadora da morte por depressão da rainha Leopoldina e que lhe dificultaram as segundas núpcias, a crise financeira gerada pelo déficit da balança comercial, fruto das baixas tarifas alfandegárias e dos inúmeros empréstimos, a falta de confiança nos brasileiros expressa notoriamente no caso do Ministério dos marqueses (os ministros de D. Pedro eram todos portugueses), a isso tudo soma-se o abandono do Brasil nas mãos de seu filho de apenas cinco anos, o futuro D. Pedro II (mas isso é outra história), após governar o país por menos de nove anos, trocando-nos pelo trono português, indubitavelmente o seu preferido.

A verdade nem sempre é agradável, mas ela é sempre bela, pois nos liberta. Se pretendermos discutir civismo, o primeiro pressuposto é a busca da verdade. No entanto, sabemos que verdade e poder são duas forças que dificilmente veremos abraçadas na praça pública cantando o hino nacional.

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[Marcos Pizzolatto é professor de História, Pato Branco, PR]