Muita coisa chamou minha atenção na mídia nacional e internacional semana passada. A chinesa Lenovo comprou a CCE, nossa popular fabricante vendedora de componentes e produtos eletrônicos de baixo preço. A Apple e o Google parecem inclinados a negociar antes de se engalfinharem na guerra da telefonia móvel. Brasileiras vendem suas intimidades às redes de fertilização e produção artificial da vida. Mas o maior destaque viria pelo International Business Times (29/08), o periódico online de Nova York. E a notícia veio de perto. Bem perto. Mais exatamente, Tupã, São Paulo.
A tabeliã Claudia do Nascimento Domingues, do 1º Ofício de Notas e protestos de Tupã, interior de São Paulo, oficializou a primeira união civil a três no Brasil. E diz que não há lei contra. Isso mesmo, três pessoas: um homem e duas mulheres resolveram formalizar uma união civil como família. O assunto teve repercussão na imprensa internacional. A BBC (28/09) em português publicou a posição da notária, que defendeu seu ato ao dizer que a união poliafetiva não é ilegal, para o espanto de muitos advogados.
Regina Beatriz Tavares da Silva, presidente da Comissão de Direito da Família do Instituto de Advogados de São Paulo (Iasp), discorda da tabeliã e diz que o documento corre o risco de ser rejeitado pelas instituições da sociedade. A notária, por sua vez, explicou que o documento não é casamento: “O modelo descrito na lei é de duas pessoas. Mas em nenhum lugar está dizendo que é crime constituir uma família com mais de dois. E é com isso que eu trabalho, com a legalidade. Sendo assim o documento me pareceu bastante tranquilo. Trata-se de um contrato declaratório, não estou casando ninguém”, afirmou a tabeliã.
Família é comunidade
A finalidade do documento, segundo o advogado que orientou o trio na sua elaboração, é garantir aos membros da união “direitos em caso de separação ou morte”. Também segundo ele, a escritura poderia abrir o precedente para mais direitos a uniões não-monogâmicas no país. Uma vez aceita a união, pensões do INSS poderiam ser reivindicadas, ele acredita.
Na mesma reportagem, Tayon Berlanga, o presidente da Ordem dos Advogados de Marília, contraria a posição de seu colega acima citado. Para ele, o documento funciona “como sociedade patrimonial, ‘portanto, não compreende todos os direitos familiares, como pensões por morte, financiamentos habitacionais, dependência em planos de saúde ou em declarações de imposto de renda’”, garante.
A importância da oficialização do ato está em seu impacto inicial e a “visibilidade de outras estruturas familiares”, segundo o presidente da Ordem do Advogados de Marília: “A escritura visa dar proteção às uniões não-monogâmicas, além de buscar o respeito e aceitação dessa estrutura familiar”, acrescentou Berlanga. A aceitação da poligamia, creio eu, deve manter-se apenas em comunidades estrangeiras que tradicionalmente praticam este costume. Por que estabelecê-la entre nós? Estabelecer o precedente do registro a três ou a quatro ou a quantos seja pode ser um ameaça à segurança do próprio tabelião e seus substitutos. Nem todo trio ou quatrilho é honesto, comprometido e bem intencionado. E além de tudo isso, se uma união afetiva simples e ordinária já é tão complicada, imaginem e emaranhado de desafetos e mal-entendidos neste tipo de união. Família com três membros é comunidade, ou sociedade patrimonial. O fato da lei não contemplar o fato da união polígama não significa aceitação social de sua instituição.
Formas de afeto
Junto com a tabeliã de Tupã, os dois acreditam ser hora para a sociedade brasileira discutir o que entende por “família”. Concordo com isso. Ninguém sabe mais explicar o que é uma família, afinal. E a sociedade deve ter claro em suas ordenações o que entende por este tipo de união social. As ações da notária, do advogado que orientou o trio e a declaração de aprovação da proteção a uniões não monogâmicas pelo presidente da Ordem dos Advogados parecem mais atos de provocação deliberados para provocar a discussão. Também não tenho nada contra isso. Principalmente porque creio que a sociedade é que define o que é e que não é família, e não o Estado ou o direito de família.
Família envolve compromisso, carinho, proteção e capacidade de perdoar, para que haja convívio saudável. Além disso tudo, família significa legado coletivo para um futuro melhor. A questão que a BBC tão bem colocou é até que ponto nosso conceito de família pode ser “esticado”, antes de se transformar em outra estrutura. Como uma comunidade, por exemplo. A oficialização de tal ato é a primeira do Brasil. Há um pouco de teste e desafio às convenções tradicionais brasileiras embutidos no ato de Tupã.
Advogados conservadores juram que o documento não vale nada e que “vai contra a moral e os bons costumes”. Mas o caso deve ser apreciado com moderação, sem levar a coisa para o lado da aceitação afetiva automática, do tipo “qualquer maneira de amor vale a pena”. Muitas formas de afeto são doentias e patológicas. Não valem a pena. Por isso, não julguemos esta questão com os sentimentos. Antes, vamos usar a razão e a História e ver o que elas nos informam sobre a questão.
“O verdadeiro casamento”
A primeira constatação que devemos aceitar é que a família não é mais a base das sociedades do Ocidente: foi substituída pela personalidade individual. Isto pode ser comprovado pelo aumento do número de residentes solitários nas cidades. O número de pessoas a morar sozinhas constitui um mercado que paga bem no mundo atual. Em segundo lugar, uma família (seja de que tipo for) não sobrevive no vácuo social. Famílias e casais devem fazer sentido para a sociedade para garantirem perenidade, segurança e permanência. Porque família envolve permanência e tudo o que se encontra nesses contratos atuais de uniões civis são garantias para uma saída rápida e vantajosa dessas uniões: todos querem entrar e sair de relacionamentos de acordo com suas vontades momentâneas.
Não estou a pregar o casamento convencional tutelado pela Igreja. Ou Igrejas. Só estou a apontar a contradição nos contratos de união que têm como cláusula principal a dissolução da união. Nenhuma sociedade sobrevive sem valores absolutos e sem religião. A sociologia prova isso. Vivemos uma época excepcional. Não podemos forjar uma moral social com base em nossas conveniências individuais. Mas esta parece ser a tendência dominante no debate contemporâneo.
O julgamento pelo lado dos afetos tem dominado o judiciário desde 1988. É o que mostra o artigo (27/08/2010) deMatheus Antonio da Cunha, do portal jurídicoInvestidura. Desde 1988, o afeto foi institucionalizado como o principal vínculo na formação da família. As novas concepções do Direito, depois de anos de influência única da Igreja, libertaram-se dessas amarras. Agora, a busca da felicidade individual e da realização pessoal estão acima do bem comum familiar abstrato.
Rodrigo da Cunha Pereira afirma que, ao relativizar o casamento, “permitindo sua dissolução, bem como o equiparar às uniões estáveis, que não exigem qualquer formalidade ‘(…) significa, em última análise, a compreensão de que o verdadeiro casamento se sustenta no afeto, não nas reminiscências cartoriais’. O Direito deve proteger a essência, muito mais do que a forma ou formalidade”.
Terreno movediço
É uma visão bastante avançada de família, mas demasiadamente apoiada em motivações pessoais e atadas à realização pessoal. Família também é, acima de tudo, uma forma de pedagogia: quando elegemos um tipo de união, estamos a escolher um determinado conjunto de valores que serão absorvidos pelas gerações futuras, presentes naquelas famílias. É preciso levar em consideração o impacto que as novas gerações vão sofrer em decorrência de ajustes na definição da família. No caso da família brasileira, passamos direto dos cânones imutáveis da Igreja católica às uniões baseadas apenas em interesses afetivos que não sabemos quanto vão durar. Pouco importa se os filhos e as novas gerações é que terão pagar pelos erros trazidos por experimentos ainda não bem estados.
De qualquer forma, retirar das mãos do Estado e do direito o poder de definir o que é família já representa grande avanço. A aceitação das uniões homoafetivas também. Mas a partir daí é que a coisa se complica: muitos conservadores aparecem com uma incômoda questão: “Se permitimos isto, o que virá depois?”, perguntam os fariseus. A poligamia, caro leitor, nunca foi problema em nosso tipo de sociedade porque nunca houve casos suficientes registrados no país. Muito embora o hábito possa estar a correr solto no interior. O problema não é a poligamia, mas sua institucionalização. O que pretendem os que pregam as uniões poliafetivas entre nós? Outro conceito de família? Proteção para novos arranjos familiares? Ou simplesmente estão a querer propor uma moral originada não no compromisso entre iguais, mas na conveniência e compatibilidade entre interesses individuais?
Estamos em terreno movediço, aqui. Não existem certezas. Só novos experimentos e arranjos afetivos que vão sendo submetidos ao julgamento da sociedade. Para além da questão jurídico-religiosa, o que deve ficar claro acima de tudo é que a sociedade civil é que define o que pode e o que não pode ser aceito como família.
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[Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor]