Há 30 anos, em setembro de 1982, circulava em Itabira a primeira edição do Papel de Pão, que foi ligeiro como um cometa – apenas oito números, o derradeiro em junho de 1983 – mas digno do substantivo jornal. Hoje, há na cidade muitas folhas sendo chamadas de jornal. É um erro, pois só prestam, e olhe lá, para apanhar pitocos de cães e gatos. São papéis venais, mentirosos, sem o timbre do talento, beneficiários do atraso das multidões e que recebem gordas somas de dinheiro público para defender o governo João Izael.
Os donos dessas porcarias feitas com celulose, releases, matérias pagas e ignorância deveriam folhear a coleção do Papel de Pão, que foi um meio para a livre expressão em prosa e verso. Envergonhar-se-iam do que fazem, caso tenham um pingo de senso crítico. Perceberiam um jornal sempre disposto a defender a cultura, em especial o patrimônio histórico, a denunciar o lado ruim da atuação da mineradora Vale e a dizer bem alto que políticos ruins fazem do Brasil país injusto.
A primeira edição trouxe na capa, com continuação na página 2, a crônica “O Velho Capitão”, da escritora itabirana Juliêta de Andrade Müller. Sob o nome, esta linha anunciava o foco interestadual: “Itabira-Rio de Janeiro”. Na página 3, poemas de mineiros e cariocas. Na 4, mais poemas, cartuns, foto antiga de procissão em Itabira e o expediente com o nome dos padeiros, como o jornal nomeou os editores: Domingo Gonzales Cruz, padeiro carioca, e Luiz Andrade Müller, padeiro mineiro. Na sequência, o auxiliar de padaria, Fanuel Júnior, e os colaboradores: Getúlio Maia, Denise Viana, Antônio Basílio, Julieta Müller, Ricardo Kac e Antônio Petrônio.
O editorial de estreia traz este belo trecho:
“Seremos sempre um meio de divulgação das notícias não publicadas, dos discursos não proclamados, das coisas medrosamente noticiadas, das injustiças praticadas, das prosas e versos rabiscados e da paz entre vossos filhos”.
Ousado e crítico
Quando o Papel de Pão surgiu, a mídia itabirana se resumia aos jornais O Passarela, Folha de Itabira e O Cometa. Hoje, há duas dezenas de jornais, uma TV pública, cinco rádios, duas revistas e pelo menos cinco portais internéticos com alguma relevância local.
Fermento na massa, o número 2 ganhou uma corzinha, vermelha, e saiu com o dobro de páginas. Na capa, esta epígrafe: “Haja reticências para o caos nosso de cada dia”. Nessa edição, um furo, não de reportagem, mas de compromisso assumido com o leitor: não trouxe a prometida entrevista com a política Sandra Starling, uma das fundadoras do Partido dos Trabalhadores. Publicou pedido de desculpa em editorial e, como tentativa de compensação, uma entrevista com o músico mineiro Marco Antônio Araújo.
O jornal cresceu, chegou a 20 páginas, tamanho folha Chamex, e despertou a atenção de militares no poder, tanto que a redação itabirana recebeu cartas do Serviço Nacional de Informações (SNI), órgão do aparato repressivo da ditadura, e pedidos de exemplares para a Biblioteca Nacional.
Quando parecia que ia se firmar, a padaria cerrou as portas. Fechava-se o jornal da família Andrade Müller. “Ficamos na dúvida: tinha de crescer, mas, se crescesse, entrava no ritmo profissional, e queríamos continuar alternativo e contestador. Também faltou ânimo financeiro”, explicou o publicitário Eugênio Andrade Müller, em 2002.
Da turma que participou do Papel de Pão, alguns desistiram da prosa e da poesia, outros, menos importantes na trajetória do jornal, se aboletaram no serviço público e há os que continuam nas letras. Domingo Gonzales Cruz é poeta, tem uma dezena de livros lançados e colabora com O TREM. Luiz Müller é dono do Diário de Itabira, que sucedeu o semanário sensacionalista Hora H e completou 5642 edições em 1° de setembro.
Em um Brasil democrático, mas injusto, com dezenas de milhões na miséria, muita violência, corrupção e impunidade, o leitor talvez conclua que, apesar de haver jornais em cada esquina deste país, há carência de folhas como foi o bravo Papel de Pão: ousado, crítico e vigilante. Estará certíssimo.
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Páginas irreverentes, anárquicas – “O Papel de Pão ajudou uma geração de jovens itabiranos no desenvolvimento cultural e profissional. Tabloide corajoso, feito de papel de pão mesmo. Por causa desse irreverente jornal, Luiz Müller começou seu trajeto de jornalista e não parou mais. Guardo na memória um momento bem marcante: durante algum tempo, os redatores reuniram-se no porão da casa do santeiro Alfredo Duval. Isso me pareceu muito significativo. O santeiro era anarquista e ativista comunitário itabirano. O Papel de Pão era anárquico e contrariava o autoritarismo da ditadura militar. Marcou presença ativa no cenário mineiro. Consta do catálogo da imprensa alternativa no Brasil.” (Domingo Gonzales Cruz, poeta e cronista, foi editor-padeiro do Papel de Pão)
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[Marcos Caldeira Mendonça é editor-chefe de O TREM Itabirano]