“Se você disseca Ulisses, dá um tweet”, disse Paulo Coelho sobre a obra de Joyce considerada por muitos o livro do século, marco da literatura moderna que influenciou escritores como Faulkner, Beckett, Guimarães, Cabrera Infante. Será que tem razão?
Obras e correntes do pensamento ocidental e oriental até podem ser resumidas em 140 caracteres.
Freud: “Como sexo está em tudo, menina tem complexo por não ter pênis, inveja a mãe, queria casar com o pai, invejado pelo filho que queria a mãe só pra ele.”
Marxismo: “Em produtos fabricados há o lucro, a mais-valia, que pode ser repartido pelo proletariado, mas fica com o dono do meio de produção, burguês ganancioso.”
Existencialismo: “A vida não faz sentido, sentimos náusea, pois a existência precede a essência, sem contar que Deus está morto, segundo aquele outro predecessor.”
Os Sertões, de Euclides: “Corno flagra mulher, sai construindo igrejas pelo sertão, leva todos pra morar em comunidade, são destroçados por republicanos que os acusam de monarquistas.”
Grande Sertão: Veredas, de Guimarães: “Jagunço tem tesão e relação de amizade dúbia e confusa com outro que só pensa em vingar a morte do pai, mas descobre tarde demais que é outra.”
Brás Cubas, de Machado: “Herdeiro novo burguês não sabe o que fazer da vida, vira congressista, se apaixona por mulher casada, esnoba uma coxa, inventa placebo, até morrer entediado.”
“Paixão por T”
Dom Casmurro, de Machado: “Vizinho novo burguês se casa com a namorada da infância, desconfia que ela o trai com amigo, aplica um assédio moral que a acaba matando de tristeza.”
Hamlet, de Shakespeare: “Herdeiro do trono pira porque a mãe dá pro tio logo depois da morte do rei, pira a prima e resolve se vingar aconselhado pelo fantasma do pai, matando geral.”
Crime e Castigo, de Dostoievski: “Sujeito abominável mata velha abominável e uma testemunha pra roubar joias, porém a culpa e a paranoia o levam a se entregar a um sargento abominável.”
Morte em Veneza, de Thomas Mann: “Velho pederasta em férias na Itália se entrega a uma obsessão por um jovem andrógino a ponto de ficar mesmo quando a peste chega.”
Metamorfose, de Kafka: “Solitário que mora com os pais acorda transformado numa barata, se tranca no quarto, passa fome e busca se habituar com o novo corpo.”
Liberdade, de Jonathan Franzen: “Mulher frustrada herdeira trai marido democrata com melhor amigo roqueiro, que trai seus princípios ecológicos e come secretária indiana.”
Na Praia, de Ian Mc Ewan: “No começo da revolução sexual, noivo descobre na lua de mel que noiva tem aversão pelo sexo, se separam, se afastam e se reencontram anos depois para descobrirem o amor.”
O Sentido de um Fim, de Julian Barnes: “Jovem casal de namorados se descobre sexualmente, perde a virgindade, se afasta, para 60 anos depois revelar que uma carta irresponsável dele resultou na morte de um amigo.”
Animal Agonizante, de Philip Roth: “Professor conquistador que comia todas cai nas garras de uma aluna latina e sente pela primeira vez o peso da velhice.”
O Homem Comum, de Philip Roth: “Professor conquistador que comia todas se aposenta, sente mais ainda o peso da velhice e passa por infortúnios médicos e sexuais.”
Fantasma Sai de Cena, de Philip Roth: “Ex-professor conquistador que não come mais ninguém vê a decadência física, a incontinência urinária, o tamanho da próstata e o aumento das rabugices abalar seus desejos.”
Amuleto, de Roberto Bolaño: “Os chilenos R e C, exilados pela ditadura de Pinochet, procuram ganhar a vida no México e se apaixonam por T.”
Gosto de ler
Putas Assassinas, de Roberto Bolaño: “O chileno G, exilado pela ditadura de Pinochet, procura ganhar a vida na França e se apaixonam por D.”
A Pista de Gelo, de Roberto Bolaño: “Os chilenos B e F, exilados pela ditadura de Pinochet, procuram ganhar a vida na Espanha e se apaixonam por N.”
OK, livros podem ser twittados. Porém nada substitui a experiência de lê-los. E a nova geração citada, apesar da gozação, conseguiu a proeza de provar que o romance está longe do fim e aceita experimentações. Que o diga Franzen.
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A declaração de Paulo Coelho ocupou espaço nos cadernos culturais e blogs. Stuart Kelly, do The Guardian, foi o primeiro a dizer que era um insulto aos leitores de Joyce. E, como sempre, trouxe no vácuo a necessidade de desqualificá-lo, apontar seus erros, chamá-lo de autor superficial, tolo, fútil.
Na mesma intensidade em que Coelho é amado e reverenciado por leitores de credos diversos, provoca rejeição na ala mais cabeça do meio literário. Para aqueles que sacralizam a literatura, Coelho e todos os autores de best-seller são zumbis que querem o sangue do leitor, já que a missão de se comunicar e contar histórias é mais urgente do que a de renovar a linguagem.
Nesse debate, lê-se o que mais atormenta a arte moderna: importa ser entendida, mexer com os canais visíveis da consciência, ou buscar o oculto através de mensagens cifradas? Arte é indústria ou transcende as “fúteis” relações de mercado?
Para alguns, Coelho “inveja” Joyce, autor de um livro que quase ninguém lê, em que a própria literatura é questionada – cada capítulo de Ulisses é escrito num estilo literário.
É que ele nunca aceitou a condição de ser “apenas” um bom vendedor de livros que encontrou um filão carente e a fórmula mágica: “contemporaneizar” fábulas numa linguagem fácil, direta, econômica e universal. Numa famosa entrevista à Veja, rolou o diálogo:
“E não tenho complexo. Eu sou um ótimo escritor. E sou vanguarda.”
“Quais as características de sua obra que a fazem ser vanguarda, na sua opinião?”
“Primeiro, o fato de ela ser rejeitada pelo sistema acadêmico. E depois o fato de o público gostar dela. Porque o público sempre pensa à frente.”
Não me lembro de J.K. Rowlings, George Martin, Nicholas Spark e Suzanne Collins se queixarem de não estar na lista de candidatos a uma mesinha da Flip. Imagino que estão bem satisfeitos por pertencerem ao time titular da literatura comercial, que fatura milhões, faz viagens de primeira classe, tem residências espalhadas pelo mundo e está se lixando para o que é debatido nas publicações literárias ou atrás dos muros que protegem os acadêmicos encastelados.
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Marcelo Tas me contou que Coelho foi buscá-lo em Genebra, Suíça, onde mora, para jantarem. Minha reação instantânea foi perguntar em qual carro. Imaginei-o de casaco de couro numa Lamborghini ou Maserati, para voarem em autobanhs sem limite de velocidade. Apareceu num Sedan. Carro de professor acadêmico europeu.
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[Marcelo Rubens Paiva é escritor, colunista do Estado de S.Paulo]