Friday, 15 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

O complexo de avestruz da imprensa paulista

“Se quiseres poder suportar a vida, fica pronto para aceitar a morte” (Sigmund Freud)

Quando vim estudar em São Paulo, conheci um mundo completamente diferente daquele a que estava habituado na minha cidade, Santo André. Embora este município se situe na Região Metropolitana e bem próximo à capital paulista, as diferenças são consideráveis, sobretudo em termos culturais. Não que Santo André seja provinciana, e sim, São Paulo que é extremamente grandiosa em todos os sentidos.

Na faculdade isso me era explícito. Observava práticas em certa medida ousadas para meus padrões. No entanto, algumas atitudes me chocavam por serem completamente paradoxais. Por exemplo: quando saía para passear com os colegas ficava intrigado com o comportamento dos mesmos em alguns badalados (e caros) bares e restaurantes. Na maioria das vezes, éramos lesados. Ou seja, chegávamos num estabelecimento e era combinada uma coisa, um preço. Além de péssimos atendimentos, na hora da conta quase sempre havia distorções (eufemismo para roubo). Aquilo que era para ser dez acabava sendo quinze. Mas o que me chamava atenção era o comportamento dos colegas no sentido de não reclamarem, brigarem mesmo. Apesar da consciência de que fôramos lesados, não era de bom tom, reclamar. Ficavam todos indignados, pois tratava-se de pessoas esclarecidas, porém quietos. Nas vezes em que me manifestei fui profundamente censurado: “Deixa pra lá, não vale a pena.” Na verdade, estava implícita nesta frase a ideia de que minha conduta ou de quem reclamasse com a energia que a situação merecia era “algo feio” uma espécie de “anomalia”, contra as regras da etiqueta.

Não obstante essa ser uma história particular e localizada no tempo e no espaço, creio que aproximar o comportamento da imprensa paulista com o dos meus colegas não é um exagero. Explico.

A função pedagógica da imprensa

Há alguns anos, em uma edição do Observatório da Imprensa, me recordo do comentário de um jornalista (não lembro qual, mas era alguém respeitável) que dizia que a imprensa paulista nunca colocava casos de violência nas primeiras páginas e isso colaborava, de certa forma, para a falsa sensação de que o Rio de Janeiro era infinitamente mais violento do que São Paulo. Não quero aqui polemizar sobre isso. Todavia é notório um certo “complexo de avestruz” na imprensa paulista no sentido de não querer enfrentar a realidade. Descarto aqui os interesses estritamente empresariais dos barões que controlam a mídia paulista. Não que isso não seja importante e nefasto para nossa sociedade, mas não é disso que me ocupo neste artigo.

Concentro-me naquela parcela “bem intencionada”, por assim dizer, da imprensa bandeirante. É incrível a falta de senso de realidade nas eleições municipais para a cidade de São Paulo. Parece que depois da trágica gestão de Gilberto Kassab a imprensa paulistana assumiu todos os mecanismos de defesa consagrados pela psicologia moderna. Sublimação, recalque, negação etc. Se não fosse trágico seria altamente risível o que chamam de “debates”. É um espetáculo sinistro, macabro e desalentador. Há tudo, menos debate. Creio que a ausência dos debates não se relaciona com má vontade dos atores envolvidos (é pior), mas a impossibilidade.

Temos uma tradição política conciliatória. Em meados do século 19, foi publicado o ensaio Ação, Reação e Transação, sob a forma de panfleto, em 1855, escrito por Justiniano José da Rocha, jornalista e político ligado ao partido Conservador e personagem para lá de controversa. Mas este ensaio dele é bastante ilustrativo. Em síntese, ele chamava atenção para forças políticas que num período são rivais, inimigas mortais, antagônicas, e posteriormente tornam-se aliadas. Temos uma literatura considerável sobre a conciliação política. Destarte, para os estudiosos do assunto não é uma grande surpresa Lula beijar os pés de Maluf. Mas não é para estes especialistas que a grande imprensa deveria estar voltada. O que se espera dela é que cumpra sua função mais do que informativa, mas pedagógica, de orientar o grande público. E aí a coisa pega.

“Sacrifício pelo bem comum”

Sinceramente, quero acreditar que não é só por incompetência e/ou má-fé que a cobertura das eleições na capital paulista é tão ruim. Por isso, evoco o complexo de avestruz. Aos fatos.

Embora reforma política e partidária seja um tema mais específico de certos grupos, sobretudo acadêmicos, isso não significa que não deva ser tratado pela grande imprensa. Em São Paulo a situação eleitoral é sem paralelo na história política recente da cidade, no sentido da falta de perspectiva, ausência total da utopia. São ridículos os programas televisivos que levam os incautos a crerem que estão assistindo a um debate. Um formato engessado e patético. Na segunda-feira, (17/09) o debate promovido pela TV Cultura/Estadão/YouTube não fugiu à regra. Evidente que a legislação eleitoral não ajuda. Mas cumpre lembrar que esta legislação atende os interesses dos partidos, pois não obstante a choradeira, estes mesmos partidos a mantêm assim.

Na edição de 10 de setembro do Observatório da Imprensa, o cientista político Marcos Coimbra criticava com razão o modo absurdo pelo qual os meios de comunicação tratam o eleitor. Um ser infantilizado e desprovido de vontade própria. O professor chamou atenção também para a estratégia dos candidatos não criticarem uns aos outros. Também concordo. Só faço a ressalva de que uma vez no atual contexto político partidário, a questão não é de escolha. Pelo menos em São Paulo, como isso é possível, se todos estão de rabo preso?Vejamos.

Como Fernando Haddad criticará duramente Gilberto Kassab se, pouco antes das eleições, ele e seu padrinho Lula o procuraram para uma aliança? Como o PT critica um afilhado do seu mais novo aliado, Paulo Maluf? Como o Gabriel Chalita baterá fortemente neste péssimo prefeito se seu padrinho Geraldo Alckmin é seu aliado? Como o Paulinho da Força irá criticar de verdade o José Serra do PSDB se tem uma secretaria no governo Alckmin (também do PSDB) até pouco tempo comandada pelo seu filho? É também o caso da Soninha Francine. Apoiou Gilberto Kassab no segundo turno, ganhou de presente uma subprefeitura e agora vem a público dizer que só trabalhou com o prefeito por “sacrifício pelo bem comum”?…

Covarde e insensível

Aliás, Soninha é um caso emblemático. Talvez por ter trabalhado na imprensa e ser da “tchurma”, é sempre poupada. Ninguém questiona o fato dela estar num dos mais patéticos partidos do país, o PPS, uma espécie de pastiche menor do PMDB. Um partido que tem na sigla “socialista” e apoiou as piores forças (PSDB-PFL) mais do que conservadoras, atrasadas, em benefício do capital internacional. Esta candidata não apresenta nada de sólido, coerente. Dá impressão que ela está disputando a direção de um centro acadêmico. Ela adora chavões, frases feitas, só que numa linguagem moderna, da galera. É incapaz de ver o mundo para além dos olhos da classe média paulistana, pedante, presunçosa e covarde. Verdadeiros fazedores de teses ruins que só encontram abrigo em nosso meio acadêmico por ser algo feudal, onde o mérito é um detalhe insignificante. Ela é tão dissimulada quanto o Celso Russomano.

Tem uma campanha contra o Russomano no Facebook, até engraçadinha, mesmo porque bater em alguém como ele não exige muito esforço. Agora, ignorar que seus concorrentes são tão ruins quanto ele é querer distorcer os fatos em benefício próprio ou querer enfiar a cabeça na areia como o avestruz. Celso Russomano e Paulinho da Força são conhecidos e reconhecidos. Não há porque gastar tinta com eles. Basta uma breve apreciação na biografia deles.

Chalita, demagogo principiante, ocupou a Secretaria de Estado da Educação por cinco anos, não fez nem deixou nada de marcante, muito pelo contrário, sua gestão contribuiu para a tragédia que é a educação em São Paulo. Seu padrinho político, o governador Geraldo Alckmin, é uma versão atualizada e piorada do Washington Luís, que governou o estado entre 1926 e 1930 e cunhou a famosa e triste frase de que questão social “é caso de polícia”. Serra mais parece um insensível aos dramas humanos. É estranho por que a imprensa nunca detalhou o fato que levou ao assassinato da menina Eloá, em Santo André. Digo isso por dois motivos. O primeiro é que por diversas vezes o psicopata que sequestrou a menina esteve na mira de atiradores de elite, policiais experientes, que não tiveram autorização para atirar. Além da mídia, que fazia um circo perverso com mais uma tragédia, a quem mais a ordem de impedir aqueles policiais de fazerem aquilo que estão preparados e para os quais foram designados, quem mais tinha interesse no prolongamento daquele filme de terror? O segundo motivo, é que pouca gente lembra, mas na semana em que houve o sequestro da jovem, Serra enfrentava uma greve dos policiais civis. Como é de seu temperamento, não conversou com nenhum representante da categoria e se escondeu no palácio do governo.

Nova versão do “bom mocismo”

Na véspera da invasão desastrosa que culminou com a morte da jovem e quase matou a outra que inexplicavelmente a polícia permitiu que retornasse para o cativeiro, José Serra estava acuado no palácio com dezenas de policiais civis em frente à sede do governo e à beira de um confronto armado com a Polícia Militar. Claro que só para imprensa paulista este evento não foi digno de repercussão. O fato é que, quando os ânimos explodiram de vez, houve a autorização para invadir o apartamento e deu no que deu. Coincidência ou não, ninguém mais fala daquele triste episódio (houve, inclusive, disparos) envolvendo as polícias do estado mais rico da federação – e tanto a polícia civil quanto a militar continuam sucateadas, funcionando apenas como cães de guarda das oligarquias.

E o Fernando Haddad? Como pode se apresentar como novo? Um ministro com uma gestão temerária no Ministério da Educação. As greves nas universidades federais deste ano foram apenas a ponta o iceberg de sua estadia à frente da pasta. Ele adora gabar-se do Prouni. Guardadas algumas exceções, este programa foi uma vergonhosa transferência de verbas públicas para instituições precárias e desonestas. Sem contar que serviu também para perpetuar o ciclo de miséria material e espiritual dos beneficiários. Gente que terminou o ensino médio sem saber ler nem escrever, foi para o curso superior e saiu igual. Pior ainda são as licenciaturas, onde o indivíduo continuava analfabeto funcional, mas agora com diploma e licenciado, isto é, analfabetos funcionais que dão aulas. Aqueles que terão a proteção da Apeoesp, para nunca serem incomodados com nada, exames, prestação de contas etc. Pois são “coitadinhos”.

E Carlos Gianazzi? Este mais parece aquele garoto rico que joga metade do lanche para um menino miserável e dorme tranquilamente. É a mais nova versão do “bom mocismo”. Propostas inconsistentes e irreais. Por que a imprensa paulista é tão cheia de dedos? Têm vergonha de falar e lançam mão de eufemismos bem elaborados, sofisticados, até quando?

Dimensão nacional

Diz um ditado popular que “faz parte da cura o desejo de ser curado”. Infelizmente a postura da imprensa paulista demonstra que a doença que já está em estado crônico tende a se agravar. Não se trata de culpar a imprensa por tudo que há de ruim na vida política brasileira, apenas de apontar que ela não está cumprindo seu papel. Mesmo que a reforma política contem termos técnicos e que seja objeto de especialistas, o grande público sempre soube que o PT e Maluf eram inimigos mortais até então. Que o Chalita critica PT E PSDB, mas já pertenceu ao último. O Alckmin é do PSDB mas torce na verdade pelo Chalita, que é do PMDB. O seu Zé pedreiro, a dona Maria faxineira, o taxista, o operário, a moça do teleatendimento, o garçom, os desempregados, não teriam dificuldade de entender isso. Só que os confundem. Insistem com aquele papinho da participação política, a importância do voto (perda de tempo e dinheiro já que é obrigatório) os valores democráticos e depois apresentam tudo junto e misturado, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Aí é fácil dizer que o povo é burro.

Outro paralelo com a insistência da imprensa em não querer enxergar o óbvio para não enfrentar o sofrimento é com o PT. Tenho vários amigos petistas, e conheço este partido desde criança, desde sua fundação. Meus pais, gente simples, eram filiados e ficaram anos desempregados só pelo fato de serem filiados. Também votei neste partido em quase todas as eleições em que participei. Hoje é com infinita tristeza que vejo as lideranças do partido se comportarem como coronéis, acima da lei e do bem e do mal, já que são coronéis de esquerda. Tento, inutilmente, convencer esses amigos petistas que o melhor a fazerem é admitirem que o partido cometeu erros gravíssimos e que, se enfrentados, podem ser corrigidos. E mais, mesmo que o Haddad vença em São Paulo, a derrota já foi consumada, com a aliança com Paulo Maluf. Aliás, dá raiva ver as pessoas destacando o lado mais “folclórico” deste político extremamente nefasto. Esquecem que ele representa, de fato, miséria, violência, desesperança. Mas, não adianta! Muitos petistas parecem estes evangélicos fundamentalistas incapazes de enxergarem um palmo à frente do nariz. Triste e lamentável.

Finalizo este artigo reafirmando que o meio que a imprensa paulista está utilizando para evitar o sofrimento (jogar a sujeira para debaixo do tapete) é inócuo e só trará mais sofrimento. Por que não admitir que São Paulo está politicamente condenado por mais quatro anos? E tratar de traçar estratégias junto com a comunidade para além de fiscalizar, pressionar por mudanças de verdade. A fórmula é simples. Basta chamar atenção para o fato de que todos os candidatos com chances de chegar ao segundo turno, e até ganhar, têm simpatia pelo prefeito Gilberto Kassab, que, infelizmente, ganhou forma e dimensão nacional com a montagem do seu PSD.

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[Cristiano Moura Gonzaga é sociólogo, Santo André, SP]