Super-heróis, personagens humorísticos, histórias infantis. Se você acha que esses são os únicos temas que encontrará em uma história em quadrinhos, vai se surpreender. Desde a década de 1990 – ou mesmo antes disso, dependendo da definição –, a arte sequencial vem ganhando espaço como plataforma jornalística.
A expressão ‘jornalismo em quadrinhos’ se cristaliza com os trabalhos do jornalista e ilustrador nascido em Malta e radicado nos Estados Unidos Joe Sacco, que transformou suas viagens ao Oriente Médio e aos Balcãs em livros-reportagens em quadrinhos. Seu primeiro trabalho nessa linha, Palestina (publicado originalmente entre 1993 e 1995 em fascículos), ganhou em 1996 o Prêmio Literário Norte-americano (American Book Award).
“Nos seus trabalhos, Sacco tem o compromisso da apuração. Ele observa a situação, analisa os dois lados, pondera e escreve o que vê. Isso caracteriza o jornalismo”, diz o ilustrador Felipe Muanis, professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense.
O jornalista Augusto Paim, autor de dois trabalhos em quadrinhos e organizador do 1º Encontro Internacional de Jornalismo em Quadrinhos (EIJQ), realizado em 2010, completa: “Sacco percebeu que o desenho dá um novo nível de profundidade e torna temas difíceis mais acessíveis”.
O formato, no entanto, não se adequa a uma cobertura diária, que requer um ritmo acelerado de produção de notícias. Nesse sentido, por demandar mais tempo, o jornalismo em quadrinhos se assemelha mais à vertente literária do ofício. “É por isso que ele também é chamado de ‘novo novo jornalismo’”, revela Paim.
Para Muanis, uma das grandes vantagens do jornalismo em quadrinhos é abalar a máscara de imparcialidade e objetividade da atividade jornalística tradicional. “Jornalismo imparcial é impossível, mas os veículos de notícia têm esse vício de esconder sua subjetividade e muitos leitores, até mesmo jornalistas, têm essa ilusão. Nos quadrinhos, o desenho e o texto explicitam que aquela é a visão do autor”, observa.
Paradigma Sacco
Embora Sacco tenha dado o tom do que seja considerado jornalismo em quadrinhos, isso não quer dizer que não houvesse experiências nesse sentido antes. De fato, há uma longa lista do uso de arte sequencial para transmitir informações de cunho jornalístico, como os trabalhos do desenhista italiano Angelo Agostini(1843-1910), considerado um dos primeiros cartunistas no Brasil.
No entanto, Muanis e Paim não consideram esses trabalhos como jornalismo em quadrinhos propriamente, e sim como histórias em quadrinhos que têm características de documentário. Isso incluiria trabalhos como relatos de viagem, autobiografias e biografias, entre outros. Persépolis, da iraniana Marjane Satrapi, e Maus, do norte-americano nascido na Suécia Art Spiegelman – primeira história em quadrinhos a ganhar o prêmio Pulitzer (1992) – seriam exemplos de trabalhos documentais.
O designer gráfico Aristides Corrêa Dutra, cuja tese de mestrado defendida na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro em 2003 teve como foco o jornalismo em quadrinhos, discorda dessa abordagem. Ele afirma que isso é usar um conjunto de parâmetros mais rígido do que o aplicado ao jornalismo tradicional.
“Usar Sacco como paradigma é limitante, porque um jornal impresso, por exemplo, não é composto apenas de reportagens investigativas, que é o que ele faz. Há cadernos de cultura e viagem, colunas de fofocas… enfim, uma diversidade de métodos e objetos”, pondera Dutra, professor das universidades Veiga de Almeida e Cândido Mendes.
Dutra acrescenta que, para alguns grupos teóricos, o jornalismo em quadrinhos sempre existiu e se chama cartum, embora pela definição corrente uma história em quadrinhos deva ter pelo menos dois quadros e uma passagem entre eles, seja de tempo, de ação ou outra qualquer.
Apogeu ou fim?
O jornalismo em quadrinhos ainda não está consagrado, mas já há um aumento de interesse dos jornais e mesmo da academia, com teses de pós-graduação, como a de Dutra, sendo redigidas sobre o assunto. Nos Estados Unidos, o jornalista Dan Archerse descreve como sendo um repórter em quadrinhos.
Já Paim criou uma lista de discussão e organizou o 2º EIJQ, que acontecerá em Curitiba entre os dias 24 e 27 de outubro próximo. “Tanto a lista como o encontro são espaços para discutir o jornalismo em quadrinhos. Eu os criei, porque percebi que havia uma carência: todos gostavam, mas ninguém discutia”, explica.
Junto com o artista MauMau, Paim fez uma reportagem em quadrinhos sobre a ocupação das favelas do Rioem 2011 que foi publicada no Cartoon Movement, site com sede na Holanda e que reúne cartuns e reportagens em quadrinhos.
Outra matéria do gênero no Brasil é ‘O incrível mensalão’, de Angeli e Mario Cesar Carvalho, publicada na Folha de São Paulo no dia 19 de agosto deste ano. “No Japão, há um site de mangás – como são chamados os quadrinhos japoneses – jornalísticos”, conta Paim.
Segundo Muanis, nos últimos 12 anos o jornalismo em quadrinhos vem crescendo. “De certa maneira, estamos vendo o movimento inverso: depois dos jornais se apropriarem dos quadrinhos, agora são estes que invadem a arena dos veículos de notícia tradicionais afirmando-se como meios independentes”, observa o ilustrador.
Para Dutra, ainda não dá para saber se essa explosão de criatividade é o apogeu do jornalismo em quadrinhos ou seu ‘canto do cisne’. “No momento, há muita experimentação na área, mas não sabemos se é um prelúdio para a consolidação desse estilo ou se é algo que levará ao seu esgotamento”, considera.
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[Fred Furtado, do Ciência Hoje On-line]