Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Fotografo, logo existo

Venina Furlan Zoppe, a dona Nena, já viveu muitas histórias em seus 82 anos, mas tem poucas fotografias. Esquecidos no fundo do armário, dois saquinhos plásticos dão conta de guardar as recordações em papel dessa senhora. Sua neta Gabriela Freitas tem 16 anos e centenas de imagens digitais espalhadas pelas redes sociais – ela acredita que fotos são feitas para compartilhar. Já dona Nena acredita que fotos são feitas para lembrar o passado. Quando jovem, conheceu um roceiro em Boa Esperança do Sul, no interior de São Paulo. Seu pai desaprovou o romance. Em vão. “Ali a gente se gostou, se conheceu, se namorou, se fugiu e se casou”, diz. É com essa frase sucinta que descreve uma parte de sua vida que, apesar de não ter sido fotografada, ainda resiste em vívidas imagens na memória.

“Câmera era cara. Nós, lá no interior, não tínhamos. Apenas com meus filhos mais mocinhos é que apareceram essas coisas diferentes”, diz dona Nena. “Momentos de fotografia dá para contar nos dedos. Era sempre em ocasiões especiais, quando os parentes se reuniam nas férias ou para comemorar batizados, aniversários e Natal.” É um mundo inimaginável para Gabriela. Com o celular, ela fotografa todos os dias e posta as imagens nas redes de relacionamentos. É um diário visual, mas público. “Tiro foto já pensando em compartilhar. Não é só para mim, senão seria sem graça”, afirma Gabriela. “Ela adora tirar fotos na frente do espelho fazendo biquinho”, conta sua mãe, Rosângela.

A produção fotográfica atual é quantitativamente alucinante e sua circulação é garantida pelas novas plataformas tecnológicas. Só o Instagram – aplicativo que permite tirar e compartilhar fotos com filtros especiais entre amigos em redes sociais – tem 30 milhões de usuários.

A dependência do olhar alheio

“Curtiram, logo existo.” A frase, uma distorção de “penso, logo existo”, máxima do filósofo francês René Descartes (1596-1650), é um retrato da nossa era, segundo Jorge Forbes, psicanalista lacaniano e médico psiquiatra que estuda as novas formas de viver na pós-modernidade. “Palavras não são necessárias. Posto uma foto, mesmo sem legenda, e o outro curte. Basta”, afirma. Forbes garante que somos passageiros de uma mudança de paradigma estratosférica. Na faculdade, o psicanalista aprendeu a diagnosticar como autista as pessoas que não falavam com outras. Caso ainda se pautasse por esse critério, Forbes teria que enquadrar todo mundo, como em O Alienista (1882), de Machado de Assis (1839-1908).

Foi essa observação que levou Forbes a pesquisar os jovens. “Há um curto-circuito da palavra. O que existe, hoje, são monólogos articulados”, afirma. “Uma coisa é falar sozinho e estar isolado; outra é falar sozinho e estar agrupado. Todas as pessoas que conseguirem inventar a articulação de monólogos terão um grande sucesso. O Facebook e o Instagram são maneiras de articular monólogos.” Compartilhar fotos compulsivamente e querer que os amigos virtuais “curtam” é um fenômeno novo.

No entanto, depender do olhar do outro para assegurar a própria identidade é um fenômeno que remete aos primórdios da constituição do indivíduo. O bebê quando nasce, já dizia o psicanalista francês Jacques Lacan (1901-1981), precisa do olhar dos pais para começar a existir. Isso funciona como um espelho – a imagem devolvida pelo olhar do outro é um alimento psíquico imprescindível – que lhe dará aos poucos uma identidade. Uma rápida passeada pelas redes sociais mostra que as pessoas costumam usar os posts para falar e colocar fotos de si mesmas. A dependência do olhar alheio persiste nos adultos.

“Quem tinha uma loja passou a ter duas, três”

Quando foi criada, em 1839, e ainda durante muitas décadas, a fotografia dependia de um aparato complicado que demandava o comando de um profissional. No Brasil imperial (1822-1889), por exemplo, os fotógrafos instalavam-se em hotéis onde recebiam a clientela. Os serviços mais comuns eram os retratos para enviar como lembrança e compor álbuns a serem expostos nas mesas das salas de estar. Entre 1910 e 1950 os lambe-lambes estavam em vários jardins públicos mundo afora. Eram profissionais que tiravam fotos comercialmente, em uma época em que uma máquina fotográfica era algo de difícil acesso por seu alto valor comercial. Os clientes usavam suas melhores roupas de fim de semana para o retrato.

Foi somente quando as câmeras ficaram mais portáteis e fáceis de manusear é que as pessoas sem nenhuma especialização na área passaram a fazer as próprias fotos. Por volta dos anos 1980, com a difusão das câmeras de plástico, a fotografia realmente se popularizou. “Você aperta o botão e nós fazemos o resto”, dizia o slogan da Kodak que correu o mundo, dando oportunidade para a fotografia estar ao alcance de milhões de pessoas. Os amadores tornavam a atividade corriqueira em festas de família, aniversários e férias.

Quem faz parte dessa geração é a filha de dona Nena, Rosângela Freitas, de 52 anos. Ela tem, por exemplo, um bolo de fotos bem maior que o da mãe. São seis caixas grandes, além de vários álbuns, fotos avulsas, polaroides e minimonóculos. “Gosto de pegar os álbuns e passar o domingo relembrando”, diz Rosângela. Ela recorda como era emocionante levar os filmes para revelar. “A gente ficava ansioso. Quando eu ia buscar as fotos reveladas, nem esperava para chegar em casa e já ia olhando.”

Até por volta de 1990 era preciso esperar entre quatro dias e uma semana para revelar as fotos, diz Ilse Martins, que administra com um primo uma loja de revelação e produtos fotográficos em um shopping de São Paulo. A década de 1990 trouxe a grande novidade: era possível revelar as fotos em apenas uma hora. “Era uma festa. Quem tinha uma loja passou a ter duas, três”, relembra Ilse. Foi nessa febre que ela e o primo decidiram entrar no ramo e abrir a loja, apesar da forte concorrência. “O mercado de revelação de fotos estava aquecido. Segunda-feira era o dia de maior movimento, no mínimo uns 150 rolos de filmes.” A situação era melhor ainda em períodos de férias. Mas a festa logo foi perdendo o embalo.

Os prisioneiros iraquianos torturados

“As câmeras digitais foram uma novidade que se inseriu aos poucos. No início [começo dos anos 2000], muita gente ainda usava só a máquina tradicional. Até 2004 era híbrido. Em 2008 terminou de vez”, diz Ilse. Duas das lojas de revelação do shopping fecharam e a tradicional rede Fotoptica perdeu o “p” e mudou de ramo em 2008, deixando de trabalhar com fotografias e passando a vender óculos. A revelação de fotos analógicas, que respondia por 95% do faturamento de Ilse, hoje mal beira os 2%. A trilha sonora para a mudança de cenário poderia ser “Desafinado” (Tom Jobim/Newton Mendonça): “Fotografei você na minha Rolleiflex/ Revelou-se a sua enorme ingratidão”.

Ronaldo Entler, professor e coordenador de pós-graduação da Faculdade de Comunicação e Marketing da Faap, reconhece que a fotografia digital causou impacto profundo na nossa relação com as imagens. No entanto, ressalta que a mudança no sistema de codificação – na forma de inscrição da imagem num suporte – não é o mais importante. “Profissionais e amadores passaram dos equipamentos analógicos para os digitais sem grandes sobressaltos”, afirma Entler. “Nesse processo, o mais importante é a possibilidade de difusão da fotografia pelas redes e a presença da câmera nos celulares. Isso sim transformou a prática dos profissionais e amadores, o mercado, as formas de circulação e recepção de fotografia.”

Atualmente, o fotógrafo que se desloca para cobrir um grande acontecimento, seja no outro lado do mundo seja no bairro ao lado, é facilmente antecedido por inúmeros amadores munidos de câmeras digitais e celulares que já terão colocado suas fotos na internet. Há uma produção excessiva de imagens, muitas descartáveis, mas, se não fossem as facilidades técnicas, as cenas de prisioneiros iraquianos sendo torturados na prisão de Abu Ghraib não seriam conhecidas pelo grande público, por exemplo. Aquilo só foi possível porque soldados americanos munidos de câmeras digitais colocaram as imagens na internet, em 2004. Do mesmo modo, flagrantes reveladores da Primavera Árabe em 2010 foram feitos por amadores. A democratização que permite a qualquer pessoa se tornar um repórter é tão forte que celulares também foram adotados por profissionais, criando um novo padrão para a fotografia.

“Hoje, todo mundo faz igual aos japoneses”

Qualquer pessoa munida de um celular com câmera é um paparazzo em potencial. Rosângela, a filha de dona Nena, almoçava com amigas em um restaurante quando entrou o ex-jogador de futebol Ronaldo. Ela quis tirar uma foto com o grupo, mas teve o pedido negado. Uma das colegas de Rosângela, ignorando o desejo do astro de não ser importunado no meio da refeição, sacou seu celular e disparou um clique. Logo em seguida, postou a imagem no Facebook. Alguns minutos depois, a filha de Rosângela, que estava em casa, telefonou. “Mãe, não acredito. Você está com o Fenômeno?”, perguntava a garota.

Hoje a fotografia é uma arte, presença constante em museus conceituados. Quando surgiu, no entanto, teve esse status negado. Críticos argumentavam que a arte deveria ser única, enquanto a fotografia podia ser reproduzida em série. Superada a questão, grandes nomes, como Henri Cartier-Bresson (1908-2004), surgiram e fizeram da fotografia uma das mais celebradas manifestações artísticas da humanidade. Atualmente em São Paulo 60% das galerias são híbridas – vendem fotografias e obras em outros suportes. Muitos artistas plásticos incorporam a fotografia em seu trabalho.

Diante do excesso de imagens no mundo, Rosângela Rennó é uma fotógrafa que praticamente não fotografa. Ela opta por debruçar-se sobre álbuns e arquivos esquecidos ou rejeitados que garimpa em feiras de antiguidade. “É um princípio de economia. Se não é necessário fotografar, por que fazê-lo?”, afirma. A artista mineira já produziu trabalhos a partir de arquivos de famílias, de negativos do Museu Penitenciário Paulista ou retratos 3×4 adquiridos em estúdios populares e lambe-lambes. “Já fizemos muitas piadas com os turistas japoneses que tiravam fotos de tudo”, diz Rosângela. “É porque eles tinham dinheiro e acesso à tecnologia. Hoje todo mundo faz igual aos japoneses e ninguém diz nada. Todos têm um celular.”

“É uma ilusão patológica”

“Fotografia tinha a ver com raridade. Hoje, com banalidade”, afirma Rubens Fernandes Junior, curador, professor e diretor da Faap, que há três décadas se dedica ao tema. Para ele, as fotografias nas redes sociais são o grande espelho contemporâneo e funcionam como um certificado de presença. Do prato de comida ao rótulo de vinho, tudo é motivo para registrar e compartilhar. “É como se dissessem: ‘Eu estou comendo’, ‘Eu estou me divertindo’.”

Os turistas, em sua maioria, sentem-se compelidos a colocar a câmera entre eles e tudo que encontram pelo caminho. A experiência é convertida em uma imagem, um suvenir. Um dos jovens alunos do professor fez um vídeo com turistas italianos em visita ao Rio. No último dia, o rapaz perguntou a um deles do que tinha mais gostado na cidade. “Vou olhar as minhas fotos e depois te digo”, respondeu o italiano. “Esse turista não teve uma experiência com a paisagem porque estava fotografando para mostrar aos amigos – que provavelmente não vão ver a imagem”, diz Fernandes Junior. “Ele deveria ter contemplado a paisagem, mas não contemplou.” Em suas aulas, o professor ensina um truque para seus alunos não caírem nesse vício da fotografia compulsiva. Quando viaja, ele compra dez cartões-postais da cidade onde está e de seus pontos turísticos. Isso o desobriga a ter essa espécie de certificado de presença (“Estive na Torre Eiffel”, “Vi a Estátua da Liberdade”).

Na mesma lógica compulsiva, é comum encontrar pessoas que, durante um show de música, passam a maior parte do tempo fotografando o evento, em vez de assistir à apresentação. A primeira explicação para o fato, segundo o antropólogo Roberto DaMatta, é básica: falta de educação. A outra, mais profunda, é que essas pessoas estão fotografando na tentativa de capturar e segurar o instante. “É uma ilusão patológica, onipotente, que crê que aquele momento não será perdido, não acabará. Uma arma contra a consciência de finitude. É inútil”, afirma o antropólogo.

“As imagens produzem uma interlocução entre tempos”

“Perde-se a emoção de se deixar penetrar pelo artista. Grava-se, fotografa-se, para nunca mais se ver. Fotografia, como é feita agora, é uma dessas revoluções absurdas, enormes, que a gente nem percebe.” DaMatta, de 76 anos, é do tempo em que compartilhar uma foto tinha um significado muito especial. “Ganhar uma foto 3×4 de uma moça era sinal de interesse, motivo para sair dando saltos para trás.” O antropólogo diz, no entanto, que a fotografia nos dá o retrato dos nossos mortos – uma maneira, ainda que ilusória, de guardar os entes queridos por perto.

Em tempos antigos era costume fotografar os mortos. No Nordeste, fotógrafos especializados eram chamados quando alguém que não tinha um retrato morria. Nessas ocasiões, eles eram tão importantes quanto o padre que fazia a reza. Com a foto, estava garantida ao menos uma imagem eterna. O profissional clicava o morto e depois fazia os retoques necessários. Com um pincel abria-lhe os olhos para lhe dar um aspecto de vida.

“Todas as imagens são potencialmente memoráveis”, diz o professor Ronaldo Entler. “Uma ou duas dessas imagens perdidas na rede de vez em quando encontram um olhar carregado de curiosidade e de afeto”, afirma Entler. “É fácil olhar para uma imagem do passado e explicar por que ela sobreviveu. Elas produzem uma interlocução entre tempos. Mas é impossível traduzir isso numa fórmula que permita prever quais fotografias de hoje alcançarão essa condição no futuro. Não imagino que estejamos em condição de sugerir o que as pessoas devam ou não fotografar ou o que não deveriam compartilhar. O presente nunca está em plena condição de dizer para que servem suas imagens.”

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[Adriana Abujamra, do Valor Econômico]