“Perdão foi feito pra gente pedir” (verso de saborosa melodia da MPB)
Pelo menos num aspecto, a decantada Coréia do Sul, um dos tigres asiáticos volta e meia apontados entre nós como paradigmas no processo de edificação de uma economia moderna, me encanta. O citado país, como nenhum frequentador de jornal televisivo tem o direito de ignorar, é aquele habitado por estudantes brabos que, com frequência, saem às ruas para protestar correndo da polícia, ou pondo a polícia pra correr. Mas, nada de equívocos. Não queiram identificar na indignação cotidiana da meninada, por favor, o item reluzente nos procedimentos coreanos que prende especialmente a minha atenção.
O que consegue me tocar e, sinceramente, me deixar com santa inveja, é a presença constante na televisão, para reverentes explicações públicas, dos políticos e empresários que ali são pegos, como se diz por aqui, com a “boca na botija”. Quando dos “flagras” de corrupção, ou de outro malfeito qualquer, os indiciados expõem a cara diante das câmeras, apresentando formais desculpas à nação. Confessam, via rede nacional, sua culpa. O gesto parece incorporado à cultura cívica do país, sem que o arrependimento, ao que tudo indica, seja passaporte para a impunidade.
Sem a constância coreana, mas provavelmente inspirados no exemplo, japoneses e chineses também agem assim. E, de certo modo, até os americanos. Anos atrás, vimos o então presidente Clinton desculpar-se perante líderes negros do Alabama, região em que se revela mais poderosa a influência da nefanda Ku Klux Klan, pela utilização de seres humanos como cobaias num experimento científico que, em proporções reduzidas, lembrou “pesquisas” alemãs e japonesas do passado. Pessoas negras, atacadas pela sífilis, foram enganosamente submetidas a um tratamento com uso de droga dita revolucionária. Na realidade, não havia medicamento algum. Eles participaram, minha Nossa Senhora d’Abadia da Água Suja, de um macabro teste de resistência física à progressão da doença.
O dever do pedido de desculpas
Fico imaginando quão proveitosa e pedagógica acabaria sendo, para nossos foros de cidadania, a adoção do modelo coreano. A programação das emissoras teria que ser obviamente alterada, já que é razoavelmente volumosa a lista dos ilustres patrícios em condições de ocuparem o horário nobre com seus reparadores pronunciamentos. Seja como for, o momento se oferece propício para muita gente, em tudo quanto é atividade, cogitar de pedidos de desculpas à nação por irregularidades cometidas.
Algo carece ser, a propósito, de antemão, anotado em boa e leal verdade: mesmo que a lista dos personagens detentores dos “requisitos essenciais” exigidos para o mea culpa diante das câmeras seja numerosa, o que tem acontecido, de algum tempo pra cá, entre nós, em matéria de apurações de fatos nocivos ao interesse público, de indiciamentos e já também de condenações, merece ser saudado como auspicioso. Está havendo como que um despertar da consciência comunitária. Isso tem impedido, ao contrário do que ocorreu intensamente no passado, que malfeitos nas atividades públicas sejam sistematicamente empurrados pra debaixo do tapete. Uma conquista republicana de autêntica cidadania, não se pode deixar de reconhecer. Cuidemos de celebrá-la.
E já que se está mesmo a falar, neste comentário, da possibilidade de pedidos de desculpa que se fazem às vezes inevitáveis, acode-me à lembrança, a esta altura, uma emblemática historieta, recolhida do cotidiano, sutilmente atada, por fios invisíveis, ao tema. Envolve alguém conhecido, pessoa de projeção, muito simpática, que se viu enredado numa situação de tremendo constrangimento. Com um punhado de amigos, avançou, madrugada adentro, em folganças boêmias. A chegada ao lar foi patética. Amparada na chorosa solidariedade das irmãs e vizinhas, malas devidamente arrumadas na sala de visitas, a esposa anunciou a inabalável disposição de retornar imediatamente à casa dos pais. As tentativas de explicação esbarraram em implacável interrogatório. A sola gasta do calçado, ele tentou explicar, não foi por causa de dança, não. É que a turma resolveu sair andando pelas ruas, revendo trechos palmilhados na infância distante… O cheiro forte de cigarro não foi trazido de casa noturna, mas sim, de desgastante reunião de negócios. Por aí. Até que, subitamente, tomado de palidez cadavérica, mais só e desamparado do que náufrago numa ilhota com coqueiro perdida no meio do oceano, não teve como: desabou os joelhos no chão, as mãos postas em gesto de unção, o tom de voz súplice. “Mulher, perdoe. Eu pequei!” Nada mais disse, nem lhe foi perguntado. Esclareceria, ao depois: “Prova esmagadora. Marca de batom em peça íntima é fogo… Não tem como justificar.”
Tem jeito, não. Tem hora que não dá mesmo pra segurar. O que fica sobrando, como única e digna opção, é o dever formal do pedido de desculpas.
Perdão não foi feito pra gente pedir, como se diz na canção famosa?
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[Cesar Vanucci é jornalista, Belo Horizonte, MG]