Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Mortes que são anunciadas

Morto nesta quarta-feira (10/10) pela polícia, o traficante José Bento, de 22 anos, o Bentinho, foi enterrado no cemitério do Sono Eterno, no Bosque, em São Paulo. A notícia está na primeira página de todos os jornais do país. Por ordem do tráfico, o comércio local baixou suas portas, as aulas foram suspensas e algumas linhas de ônibus deixaram de funcionar. Dessa forma, os trabalhadores tiveram que andar cerca de cinco quilômetros para trabalharem. Ou seja: o morro do Gabiru se tornou território dos traficantes, apesar da presença maciça da polícia nas imediações.

Para entender melhor como o narcotráfico consegue impor o seu poder, conversamos com o doutor TCM, sociólogo que é especialista em políticas sociais e estudioso de favelas. De acordo com ele, os criminosos conquistaram espaço graças à incompetência do poder público, que se omitiu, durante anos, e abandonou a população dos morros à própria sorte. Ou seja, falta tudo. Saúde, educação, segurança, saneamento básico e moradia. Ao contrário, das demais periferias de outras grandes cidades, no Gabiru não há urbanização.

TCM lembra que um dado importante a ser considerado: a ocupação desordenada do morro. Isso ocorre desde o início do século 19. Resultado: 200 mil habitantes ocupam o local, que virou polo de atração para pessoas de baixa renda que não podem pagar aluguel em outro lugar. Todo mundo sabe que quem mora ali é obrigado, todos os dias, a conviver com a violência do tráfico, da milícia e a prostituição escancarada. Afinal, que expectativa pode ter o cidadão dali? Nenhuma. Não resta dúvida que os moradores dos morros – do Gabiru e demais – são verdadeiros heróis, que sobrevivem ante uma tragédia anunciada. “De fato, ali existe Deus, do contrário, todos estariam mortos ou sucumbiriam ao crime”, afirma TCM.

Refém da situação

E, as ONGs? Algumas procuram fazer um bom trabalho, outras nem tanto. Por isso, é preciso fiscalizá-las bem de perto. Saber o que fazem. É o mínimo que se espera de um poder público ausente. É sabido que, para legitimar seu domínio nos morros, os traficantes promovem algumas ações sociais como transporte, fornecimento de remédios para os doentes, assistência jurídica e alimentar. “É claro que há o uso da violência para espalhar o medo e o pânico entre a população local, que é obrigada a se curvar e obedecer à lei do silêncio. Acaba morto, quem desobedece”, conta TCM.

Por outro lado, a população, é vítima de toda sorte de abusos cometidos mesmo pelos agentes da Lei. “Não há resposta às suas demandas”, revela o especialista. A propósito, vale lembrar que, muitas vezes, esses agentes não estão devidamente aparelhados para enfrentar o poderio de fogo dos criminosos de forma igual. É o mesmo que querer mastigar quando não se tem dentes. Mais: há casos em que o trabalho dos policiais é dificultado porque os barões das drogas seduzem e cooptam membros do judiciário ou da cúpula policial. Outra situação absurda, que está se tornando comum, é o caso de presos que fogem dos presídios de segurança máxima pela porta de entrada. O próprio Bentinho conseguiu a façanha.

De outro lado, o Estado oficial, que existe para defender o interesse do cidadão, se mostra incapaz de desmontar a logística que a bandidagem montou. Terrível é saber que a sociedade civil vai pagar a conta. Na verdade, nossos governantes preferem construir presídios às escolas. Ou melhor, presídios rendem votos. Enfim, a situação crítica que vivemos, no momento, é responsabilidade dos governantes que nada fizeram para impedir isso. Muitos estão preocupados em se reeleger ou enriquecer com os cofres públicos. Dessa forma, descumprem suas obrigações e a população fica acuada e refém da situação.

Variáveis complexas

Enquanto isso, ironia ou não da vida, Beto Camargo, de 21 anos, é o novo rei dos negócios do falecido Bentinho. No Gabiru e adjacências, Bentinhos e Camarguinhos matam e morrem todos os dias pelo controle milionário das drogas. Afinal, Camarguinho sabe que sua coroa tem prazo de validade. No entanto, para ele, pouco importa. No momento, quer curtir o luxo que sua mansão oferece, o poder que a indústria das drogas lhe garante e depositar seu dinheiro em algum paraíso fiscal.

Certamente, não podemos incorrer no erro de acreditar que a violência não tem jeito. Sem dúvida, investimento maciço, dos três níveis de governos, em saúde, esporte, lazer, educação de boa qualidade, construção de habitação popular, combate ao comércio ilegal de armas, criação de programas de combate à pobreza e desemprego para jovens e adultos, bem como policiamento preventivo e comunitário. Sem isso, nada muda. Com investimento público, muito provavelmente, o narcotráfico, o jogo do bicho e a milícia não terão tanto poder e força nos morros.

E a imprensa, o que faz? Segundo o jornalista Alberto Dines, a violência é tratada de forma fragmentada pela mídia. Melhor dizendo: não há um elo claro que ligue os vários pontos da questão das drogas e violência. Na verdade, nem sempre as empresas jornalísticas querem investir recursos de peso nesse tipo de cobertura. Isso dificulta e impede o trabalho de apuração pelo repórter. De outro lado, a mídia adota uma postura de indiferença. Dessa forma, perde a oportunidade de movimentar a sociedade civil para que pressione as autoridades. Além de dar maior visibilidade ao tema, a mídia deve provocar o debate público e lutar para que as coisas não fiquem como estão, ou melhor, como se nada estivesse ocorrendo. Afinal, a violência, independente de onde venha, é um insulto execrável à cidadania e direitos do cidadão.

Em conclusão, para mudar essa dura realidade, basta que o governo faça o seu papel, ou seja, que pare de fechar os olhos para a realidade. É preciso garantir ao cidadão o direito ao trabalho, o acesso a bens culturais e promover a melhoria de sua qualidade de vida. Como afirma TCM, se o Estado deixar de agir, os barões das drogas farão o seu papel. Caro leitor, em sua opinião, como resolver essa problemática que envolve variáveis tão complexas?

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[Ricardo Santos é professor de História, São Paulo, SP]