Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Traço poliglota

Quando entrou na redação do Pasquim, em outubro de 1972, Cássio Loredano tinha 20 e poucos anos. Deu de cara com Jaguar, puxou conversa e saiu com livros de Saul Steinberg debaixo do braço. Para um “caipira”, como diz ele, recém-chegado de São Paulo, foi um deslumbre: Loredano, que então desenhava para o jornal Opinião, em prédio vizinho ao do Pasquim, na Rua Saint-Roman, em Copacabana, passou tardes e tardes estudando a obra do cartunista norte-americano.

Agora, passados exatos 40 anos desde aquela sua entrada no Pasquim e de seus primeiros trabalhos como desenhista no Opinião, Loredano, 64 anos, divide um apartamento na Rua Marquês de Abrantes, no Flamengo, com a mulher, a produtora Rosana Lobo, a filha caçula, Alice, de 4 anos, e 4 mil livros. Coleciona dicionários, incluindo títulos exóticos como o de termos africanos em português do Brasil (“Cara, tem vááárias páginas para a palavra 'bunda'!”, ele se diverte), voltou a estudar latim e fez uma espécie de galeria com 50 desenhos das três filhas na entrada do apartamento – as mais velhas, Júlia e Isabel, do primeiro casamento, hoje com 18 e 13 anos, puderam rabiscar livremente as paredes dos apartamentos onde moravam; já a caçula, Alice, rabisca o papel (“Gastei todo o meu capital pintando paredes dos apartamentos, não dá mais!”).

Ele próprio não começou tão pequeno – tinha 24 anos quando estreou como desenhista, mas desde então não parou de produzir. Quarenta de seus desenhos estarão na exposição que abre hoje na Galeria Paulo Fernandes, no Centro do Rio. São caricaturas, especialidade de Loredano, dos mais diversos personagens, feitas desde os anos 1970. Há de Franz Kafka e Machado de Assis a Lula e Dilma Rousseff.

“Minha cachaça é a imprensa”

A pedido do Globo, ele fez o autorretrato que ilustra este perfil e diz que, consigo próprio, seu traço é mais “bonzinho”.

– Sou malvado com os outros. Digo, há duas vertentes: os escritores e os políticos, que são indignos. Com Kafka, fui favorável. Agora, com o José Dirceu, não dá! Não dá! – diz, enfático, o cartunista que, depois de 20 anos, deixou o jornal O Estado de S.Paulo em junho e agora vem desenhando para as revistas Veja e Piauí.

Filho de um oficial de cavalaria e engenheiro civil, Loredano nasceu no Rio por acaso. Sua mãe é cearense – ele pede aqui um parêntese: sua mãe é filha de João Cordeiro, abolicionista que libertou os escravos no Ceará antes mesmo de 1888 (“Tenho muito orgulho disso”, diz). Seu pai estava de passagem pelo Rio, e Loredano acabou nascendo no Hospital do Exército, em Triagem. Dias depois, a família já estava em Curitiba, no Paraná. Lá, nasceram três de seus oito irmãos (há ainda quatro paulistas e um gaúcho). Já adolescente, em São Paulo, deixou a casa dos pais (“Meu pai me fez um desaforo, brigamos, mas hoje somos amantes”) e seguiu para Santo André, na Grande São Paulo.

– A primeira providência que eu tomei em Santo André foi perguntar: “Que jornais existem aqui?” – lembra o cartunista. – Bati na porta do Repórter, e eles me disseram pra ir ao Diário do Grande ABC, que tinha acabado de virar diário. Fui lá, enchi o saco dos caras, até um dia faltar um revisor de prova. Comecei naquilo, varando madrugadas. Ia até três horas da manhã. É uma cachaça que eu tomei em 1969 e nunca mais parei. Minha cachaça é a imprensa.

Embora seja autor de uma dezena de livros (sete deles sobre J. Carlos, pioneiro na ilustração de jornal), todos os desenhos que produziu foram a pedido da imprensa – “ou do tal gancho” (jargão jornalístico para definir o motivo que dá ensejo à publicação de uma reportagem).

– Sou fundamentalmente jornalista. Nunca fiz desenho que não fosse pra ser publicado na imprensa – afirma.

Pouco antes de ser desenhista da imprensa, ele chegou a trabalhar como repórter na sucursal do Globo em São Paulo. Foi lá que, certa vez, soube que um “tal Raimundo Pereira” (um dos fundadores do jornal Opinião, célebre por ter trabalhado em publicações como a revista Realidade) havia passado horas à sua espera.

– Quando eu cheguei à sucursal, olhavam pra mim como se eu fosse um fantasma e diziam: “Puta que pariu, caralho, você não sabe quem ficou te esperando aqui: o Raimundo Pereira!” E eu perguntei: “Quem?” Veja a minha ignorância… Ele foi embora, deixou o telefone pra eu ligar. Contou que estavam criando o Opinião e que o jornal seria no Rio.

Loredano então voltou à cidade natal. Sem verba para fotografia, a direção decidiu que o jornal seria todo desenhado. E assim ele começou a criar os primeiros desenhos e caricaturas. Ao retratar uma fisionomia, sua preocupação “primeiríssima”, como diz, é jornalística.

– Mas tenho consciência de que trabalho com categorias estéticas, procurando o belo ou até o feio, mas com riqueza plástica – explica, antes de citar uma de suas principais referências. – É uma lição que aprendi com Luís Trimano (desenhista argentino que chegou ao Brasil no fim dos anos 1960 e desde então mora em Santa Teresa): o desenho tem que ser bom, tem que ser forte. Isso é uma lição de muita utilidade, inclusive na ditadura. Não podia quase nada, mas desenho bonito, podia. E fazíamos isso, de preferência desenhos que até violentassem ou revolucionassem esteticamente aquele status quo . Isso podia, porque a censura era burra. De maneira que o negócio passou a ter valor.

Loredano começou a ser valorizado até tornar-se conhecido em especial por “tirar a moldura da caricatura”, como avalia o crítico Ronaldo Brito, curador da exposição na Galeria Paulo Fernandes. Brito escreve que “ao exagero típico do gênero, Loredano trouxe um signo distintivo inédito: a economia elegante”. Já o cartunista, modesto, diz que ele apenas foi “limpando” o desenho até restar o essencial, e que sua virtude está apenas no fato de ter aprendido a lição de Trimano. O cartunista Chico Caruso, colega no início dos anos 1970 no jornal Opinião, conta que Loredano foi um dos primeiros a conseguir modular os tons das ilustrações em jornal, tornando a caricatura quase conceitual:

– Eu me lembro de um desenho do John Lennon, só os óculos balançando, e de outro da Janis Joplin, um fósforo queimado. Já não era a semelhança física, era o conceito da alma do artista que ele pegava. O Millôr dizia que o Loredano era o maior derretedor da figura humana. Seus desenhos têm a grandeza das artes plásticas.

Em busca do tempo perdido

Em meados dos anos 1970, já conhecido aqui, arranjou um pretexto para viajar: queria ler Heidegger no original. Mudou-se para a Alemanha, onde ficou por cinco anos, estudando o idioma e já contribuindo para publicações como o Frankfurter Allgemeine e o Die Zeit. Em seguida, foi à Itália. Em um ano, já falava o idioma fluentemente. Depois, a fim de ler e melhorar a fluência em francês (“Podia ler qualquer prosa, mas não podia ler qualquer poesia. Porque poesia é música”), mudou-se para Paris, onde desenhou para os jornais Libération e Révolution e para a Magazine Littéraire. Mais tarde, fixou-se em Barcelona e passou a colaborar com o espanhol El País – seu contrato com o jornal, de 25 anos, terminou há pouco. Ao todo, foram 14 anos viajando e desenhando na Europa.

– Fui correr atrás do que eu perdi. Eu era muito mau aluno. Precisei buscar neutralizar um pouco da grande ignorância com que entrei na idade adulta – diz, já se lembrando de novo dos amigos do Pasquim. – Os caras falavam de jazz, e eu só sabia samba, o que não é pouco, mas eles sabiam jazz! ( enfatiza a palavra ). O Millôr era um grande leitor, antes de mais nada. Eu ficava com vergonha. E a vergonha, veja você, é um bom professor.

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[Audrey Furlaneto, de O Globo]