“Grande Florianópolis tem maior crescimento do país” é a manchete desta quinta-feira (25/10) do jornal Diário Catarinense, o carro-chefe impresso do Grupo RBS em Santa Catarina. O estudo é do programa Habitação, da Organização das Nações Unidas (ONU). A notícia, na página 33, é acompanhada da “Opinião DC”, que inicia com a afirmação de que “para os moradores é causa de justo orgulho o fato de a Organização das Nações Unidas (ONU) ter apontado a região metropolitana de Florianópolis como a que mais cresce no país”. Não se sabem os motivos de tal orgulho porque, em seguida, o texto lista os problemas da capital: “Eles vão da falta de mobilidade, do saneamento básico deficiente, transitam pelas áreas faveladas, focos de delinquência e carência, e chegam a muitos outros que deprimem a sociedade.”
E termina afirmando que “os benefícios do crescimento ordenado da região (…) não têm sido distribuídos com a desejável justiça e equanimidade”: “O verdadeiro crescimento não se restringe à economia. Mas supõe, também, o compartilhamento dos seus frutos para a construção de uma sociedade mais justa e humana. Chegaremos lá”. Essa frase final, como ligá-la ao trecho em que as “áreas faveladas” são indicadas como focos de “delinquência e carência”? A resposta está no próprio jornal, em reportagem especial publicada no dia 16 de outubro e que reproduziu notícia do jornal O Globo (ver aqui).
Em um dos trechos, uma empresária de Jurerê afirma: “Apesar de reconhecer a qualidade de vida local, ela acha que ainda falta glamour ao bairro: ‘Tem muita coisa aqui que parece de interior, faltam bons restaurantes, bons hotéis, precisamos de um Emiliano, de um Fasano. Tem muita loja feia, tem coisa que parece favelinha. Precisávamos ter tudo chique, branco e dourado, poderíamos ter uma Beverly Hills aqui’.”
“Uma marina não polui. Ela embeleza”
Foi na vizinhança, em Jurerê Internacional, que cinco jovens de classe média foram presos em flagrante no sábado (20/10), suspeitos de furtar casas por “diversão”. Está no próprio DC.
Republico abaixo trecho de outro texto que fiz sobre como o discurso jornalístico reproduz, sob os mais diversos modos, a fala preconceituosa da autoridade e dos “classe A”.
“Vale a pena relembrar um caso exemplar, a instalação de um empreendimento empresarial turístico (campo de golfe) no balneário de Ingleses, em Florianópolis. Próximo ao empreendimento mencionado há uma comunidade, a Vila do Arvoredo, também conhecida como Favela do Siri, que começou a se formar nos anos 1980. No embate travado para a instalação do campo de golfe, é ilustrativo o conjunto de comentários feitos pelo então governador do estado, Luiz Henrique da Silveira, em entrevista concedida à TVBV em abril de 2007, na qual há 17 minutos referentes à temática ambiental (ver aqui).
Nela, o governador Luiz Henrique da Silveira menciona o assunto (1), quando questionado sobre a reclamação dos empresários em relação à “burocracia” e a “dureza” das leis ambientais:
(1) “Eu acho que nós vamos ultrapassar esse período negro, que não é possível que nós não possamos ter em uma ilha como essa, maravilhosa, certo, marinas para receber turistas estrangeiros com muito dinheiro que venham gastar aqui e gerar emprego. Que nós não consigamos fazer um campo de golfe, meu deus do céu. Em Marbela, você viu, tem 50 campos de golfe e por isso aquela vila pobres de pescadores foi transformada num dos maiores polos milionários de turismo. Então nós precisamos ter uma evolução. O que as pessoas têm que ter em mente é que uma marina não polui. Nós vimos lá em Marbela, dentro da marina, a profusão de peixes que havia. Pelo contrário, ela desenvolve, ela embeleza. Ela traz um novo dinamismo para as cidades. Então nós temos que superar isso, estamos com um grave problema, eu vou dizer aqui especialmente para os florianopolitanos” […].
Favelas jogam cocô para a praia
No trecho seguinte (2), o governador classifica de “medievalismo” a posição do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) em relação às licenças ambientais e diz que é preciso descentralizar as decisões relativas às políticas de meio ambiente:
“Quem sabe cuidar mais de Florianópolis é o florianopolitano. É a prefeitura, é o vereador. Quem sabe cuidar mais do meio ambiente do estado é o governo do estado, são os deputados estaduais. Então é preciso acabar com essa burrocracia [com dois erres na pronúncia] em que dois ou três técnicos lá em Brasília, longe da realidade, decidem as coisas, ou não decidem, porque um monte de processo, uma montoeira de processo não lhes dá tempo nem de examinar os processos.”
Um dos apresentadores pergunta então se não é necessário haver controle em relação a isso, porque a natureza estaria “dando resposta” às ações humanas, ao que o governador questiona:
(3) “E agora você me diz: e a favela do Siri, ali? Do lado do campo de golfe que não querem deixar o Fernando Marcondes [de Mattos, empresário] fazer? Por que não se proíbe a proliferação de favelas, que joga – me permita a expressão irada – cocô para a praia para provocar doenças nas nossas crianças? Por que não se atua nisso aí para impedir? Né? Por que não se atua nisso aí para impedir? A favela pode poluir a praia. Agora, um resort, um hotel, um campo de golfe, para atrair turista e gerar emprego e renda não pode.”
A hipocrisia da empresa
Do ponto de vista discursivo, evidencia-se, na fala do governador, uma série de indícios que apontam para diferentes sujeitos sociais: “não querem deixar (…) fazer” (quem?); “nossas crianças” (quais?); “por que não se atua (…)” (quem?). No trecho 2, ele deixa explícitos, porém, os sujeitos sociais que seriam os mais capacitados para “cuidar” do “meio ambiente” do estado. E no trecho 1 está sinalizado o exemplo da “evolução”, o balneário de Marbella, na Costa do Sol, Espanha, totalmente descaracterizado pela especulação imobiliária estimulada pela corrupção (ver aqui).”
As páginas 6 e 7 do Diário Catarinense do dia 19 de outubro estamparam um anúncio publicitário da Hantei sobre o projeto de hotel na Ponta do Coral. Um dos tópicos das ditas áreas públicas do empreendimento menciona: “Sem custos à sociedade a nem ao Município”.
Ora, ora… Vale lembrar o que diz o geógrafo Milton Santos:
“A globalização atual é perversa, fundada na tirania da informação e do dinheiro, na competitividade, na confusão dos espíritos e na violência estrutural, acarretando o desfalecimento da política feita pelo Estado e a imposição de uma política comandada pelas empresas.”
O empreendimento da Hantei, apoiado ardentemente pelo Grupo RBS, “sem custos à sociedade a nem ao município”, revela toda a hipocrisia de uma empresa oligopólica, dona de praticamente toda a informação dita jornalística que circula em Santa Catarina. Diz ela, em sua “Opinião DC”, que o “verdadeiro crescimento não se restringe à economia. Mas supõe, também, o compartilhamento dos seus frutos para a construção de uma sociedade mais justa e humana. Chegaremos lá”. Pena que, para a concretização dessa sociedade mais “justa e humana” na “Beverly Hills” catarinense, onde jovens de classe média praticam crimes por diversão, existam, no caminho, “áreas faveladas, focos de delinquência e carência”…
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[Míriam Santini de Abreu é jornalista, Florianópolis, SC]