O recrudescimento da violência em São Paulo está fazendo com que, enfim, a grande mídia se ocupe devidamente do assunto. No que não faz mais do que sua obrigação, pois não é de hoje que a caótica situação da segurança no estado preocupa, causando desassossego à população sem que as autoridades consigam estancar o avanço da criminalidade, que nos últimos meses ganhou ares de epidemia.
Cobertura policial nunca foi prioridade na grande imprensa paulista, tradicionalmente elitista e arregada com o tucanato que monopoliza o governo local há décadas. Razão pela qual raramente se debruça sobre o problema com o desejável empenho e profundidade, limitando-se a coberturas episódicas e fragmentadas, como já apontado diversas vezes neste OI. Ou seja, a imprensa deita e rola em casos isolados e de grande comoção, como o dos Nardoni, Richthofen, Matsunaga e outros crimes chocantes que renderam manchetes por semanas, mas no que tange à rotina diária de mortes e execuções de parte a parte, no mais das vezes limita-se a reportar, enfatizar as baixas, numa contabilidade macabra que não deixa de confirmar o verdadeiro estado de guerra que toma conta do país – e de São Paulo em particular. Uma guerra consentida, pela inoperância e ineficiência dos órgãos competentes.
Não se nota na grande imprensa, mormente a escrita, disposição e resiliência na cobrança por medidas mais eficazes no combate e repressão a criminalidade, mesmo sendo visíveis as causas principais da exacerbação do problema nos últimos meses. A prestigiosa revista Veja, por exemplo, na semana em que não se falava em outra coisa senão na bárbara execução do policial Marcelo Fukuhara em Santos, cujas imagens captadas por câmeras de segurança tiveram milhares de acessos no YouTube, preferiu destacar o desafio maroto de Ronaldo Nazário no quadro “Medida Certa”, do Fantástico, com direito a uma ridícula foto de capa da imensa pança do ex-fenômeno.
Situação fora de controle
Mas prato cheio mesmo para o grosso da mídia tem sido o desdobramento do julgamento dos réus do Mensalão, alçado à condição de divisor de águas na justiça brasileira pela perspectiva de punição exemplar ao até agora inimputável crime do colarinho branco.
Loas, aplausos que de qualquer forma não justificam a relutância da imprensa no trato daquela que vem sendo apontada em pesquisas, como a questão que mais preocupa a população, cada vez mais descrente dos discursos e promessas inócuas das autoridades. Verborragia que na prática não tem passado de mera bravataria, como se a promessa de retaliação pudesse intimidar a bandidagem.
Na verdade, não só não se intimida como reage prontamente a ações policiais que primam pelo grande número de mortes, em detrimento de detenções, o que sugere que a ordem que está prevalecendo é atirar primeiro e perguntar depois. Procedimento que ao invés de sufocar a criminalidade, acaba gerando ainda mais violência, com o revide direcionado à eliminação indiscriminada de policiais numa proporção nunca vista, aumentando a sensação de que a situação está fora de controle.
Famílias destroçadas
Um quadro que se torna ainda mais revoltante em função da parcimônia das autoridades no sentido de implementar as medidas básicas para estancar a onda de criminalidade. “Nós estamos com a estratégia absolutamente correta”, insistiu o secretário da Segurança Pública Antonio Ferreira Neto durante evento no Palácio dos Bandeirantes na última sexta-feira (26/10). ‘’Esses ataques são ações isoladas de traficantes. Alguns se aproveitam dessa situação para fazerem (sic) acertos de contas com alguns policiais, desafetos”, completou, segundo reportagem do Diário de S. Paulo de sábado, dia 27.
“Há sucateamento da Polícia Civil e a militarização da segurança”, reagiu a pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP Camila Dias na mesma matéria. “Estamos sucateados. Polícia Civil forte investiga, prende, apreende e não mata”, confirma George Melão, do Sindicato dos Delegados, também ouvido pela reportagem do tabloide, que tem sido uma agradável surpresa na imprensa paulista, com uma série de matérias sucintas e extremamente pertinentes sobre o tema. Como aquela estampada na primeira página desta mesma edição sob o título “Violência contra PM faz órfãos”, retratando o clima de revolta que toma conta de grande parte das corporações.
A manchete dava conta da morte do soldado Fabio Tosta Thomas, mais um policial chefe de família executado covardemente por dois motoqueiros na Zona Leste da capital, modus operandi que se tornou marca registrada dos marginais. Para além das estatísticas, mais duas filhas órfãs e outra viúva revoltada para o rol das famílias destroçadas pelo crime organizado e desamparadas por uma instituição pública que deveria não só equipar e proteger melhor as corporações, como garantir remunerações mais condizentes com o risco e a importância vital que representam para a sociedade.
Bravataria irresponsável
Um estado de coisas que veio a público de maneira ainda mais dramática com a revolta incontida da mulher do sargento Matsumoto, Rosana Alves Gonçalves, que praticamente presenciou a execução ocorrida no último dia 7/10 em frente ao buffet de sua propriedade no bairro da Ponta da Praia, em Santos. Articulada e destemida, mesmo sob forte emoção, ela deu depoimentos contundentes contra o descaso da cúpula da Polícia Militar com seus integrantes, que trabalham sob permanente tensão e pressão, são mal equipados, ganham pouco e suas famílias sequer possuem os benefícios garantidos aos detentos, cujos filhos, por exemplo, têm direito a uma mesada de R$ 915,00, denominada de auxilio-reclusão, arcada pelos cofres públicos, ou seja, pelos contribuintes.
“Peço à sociedade para não esquecer o Marcelo Fukuhara. Eu imploro por justiça, que me tragam esses homens que fizeram isso com meu marido. Pelo menos que eu saiba que lutaram por ele, que pegaram e prenderam esses marginais. Pelo amor de Deus, que isso não seja esquecido, que ele não tenha morrido em vão”, desabafou, num apelo que poderia ser perfeitamente extensivo à imprensa, que não costuma se fazer de rogada para dar sua missão por encerrada. Tanto é que, uma semana após o ocorrido, o assunto e o comovido apelo de Rosana praticamente evaporaram da mídia.
O que dá ensejo à pergunta que não quer calar: e o velho e bom jornalismo investigativo, onde anda? Pelo visto, não anda. Empacou. Escafedeu-se. Ou bandeou para algum lugar obscuro na nebulosa internet, de onde as informações e os furos brotam instantaneamente, como especula, incomodado, o decano Mario Chinamovitch, em seu pungente “O lamento de um dinossauro“, publicado neste Observatório.
Espécies em vias de extinção: por enquanto é a maneira antiga de fazer jornalismo. Lá na frente, talvez o próprio jornalismo. E vamos combinar: violência não se combate com retaliação e bravataria irresponsável.
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[Ivan Berger é jornalista, Santos, SP]