Já foi o tempo em que você comprava um jornalão dominical e recebia, além das informações gerais, nacionais e internacionais, dos quadrinhos, do horóscopo, das palavras cruzadas e jogos de xadrez, das colunas sociais e de fofocas, também alguns belos poemas, variados contos, resenhas de livros de nível, quando não graciosos folhetins em capítulos, e tinha enorme prazer de repassar o jornal pros familiares todos, cada um do lar se identificando com um segmento informativo do veículo impresso, o que tornava a própria chegada do jornal uma festa, uma expectativa. Bons tempos, aqueles. Eu mesmo conheci isso. Em casa era uma espécie de “castigo” ler um texto indicado, comentar sobre ele, pensar a respeito, quando não resumir direitinho. E isso fomentou cultura no clã, valorou a leitura (e a escrita) como um vício até, um costume ainda disseminado entre os herdeiros por consciência adquirida. Sorte nossa.
Já foi o tempo em que o jornal era preocupado com a cultura como um todo, em que recitais, saraus de poesia e colunas de arte literária eram valorados, disseminando a cultura e propagando o valor da língua mátria, só pra citar Caetano Veloso. Agora, os bicudos tempos neoliberais da globalização sem seca são outros. Azar nosso e da cultura brasileirinha, que agoniza e morre.
Por incrível que pareça, lamentavelmente o próprio Jornal da Tarde (de São Paulo), que tinha o espetacular “Caderno de Sábado” totalmente voltado para a cultura muito mais caseira, com crítica literária nacional de primeira, de Erorci Santanna a José Nêumanne Pinto, de Nelson Oliveira a Wilson Martins, sem mais nem menos, de um dia pra outro, sem avisos e explicações plausíveis, simplesmente acabou com o caderno tão ansiosamente esperado, repentinamente extinto sem qualquer bom senso, quando valoraram ainda mais o “Jornal do Carro”, criaram novos cadernos de imóveis, de Turismo, de Informática, veículos e então a base cultural somada ao veículo informativo foi pra cucuia, infelizmente.
Importantes cabeças pensantes
O insosso Caderno 2 do Estadão tem aqui e ali algum espaço cultural muito raso e, normalmente, vem com publicação pseudocultural traduzida de grandes jornais norte-americanos, quando não de algum país da Europa, mas tudo muito água-com-açúcar, raro é um texto que realmente ajuda, raro é um assunto temático que impressione pela qualidade, ficando o leitor interessado em cultura mais abrangente, com os caraminguás de tópicos mirrados sobre teatro, MPB (em decadência), balé, memórias, um e outro site ocasionalmente afim citado de passagem, croniquetas semanais e fim, babau, acabou o antigo grande conteúdo do jornalão dos Mesquitas. Que pena.
A Folha voltou o caderno da “Ilustrada” para os domingos, mas não mudou muito, não evoluiu nada, aqui e ali circunstancialmente valora algum localizado segmento ocasional de cultura, mas muito raro a literatura universal e, claro, contos e poemas inéditos jamais, apesar de nossos “barrados no baile”, os craques na new literatura, inclusive os chamados neomalditos que anseiam por um espaço precioso para mostrarem sua criação e resistência, dando codinome aos bois, parafraseando Millôr. Esses estão fora do contexto midiático e que se arranjem de outro jeito.
Andei sapeando via internet os cadernos culturais dos jornalões do Grande Rio, de Belo Horizonte e plagas acima, depois de Curitiba e todas as grandes metrópoles sulistas, e descobri que não muda muito a carestia lítero-cultural. Poemas, contos? Nem pensar. Estão lá os consagrados figurões com suas crônicas de épocas que nem sempre tão criativas, gostosas ou espetaculares, alguns amigos da casa escrevendo o óbvio ululante sobre enfoques narrativos triviais, às vezes, claro, tomando espaço de criatividades novas que dariam fermento hábil para importantes cabeças pensantes da cultura contemporânea que sobrevive com dificuldade nessa marginália literária por atacado desses bravos brasis gerais.
Os amiguinhos de sempre
Sobrou o que? Deixei por último de propósito. O caderno “Mais” dos Frias, da Folha, que você lê com certo temor adquirido por ranço de rotina costumeira porque, claro, estão lá sempre por rodízios sazonais os mesmos de sempre, dos poetas da casa que são todos de uma mesma editora pequena do Rio de Janeiro – que para disfarçar tem vários nomes de fantasia – Augusto de Campos, Décio Pignatari, e, aqui e ali uma tradução de um arcaico literato russo ou alemão decadente, e, fica-nos a impressão de que eles revezam esses nomes achados nos baús da história, mais um repetitivo Wally Salomão daqui e um ocasional achado caseiro dali, sem qualidade inteira, completa, inédita, de alguma panelinha pertinente, já que não estão mesmo muito preocupados em selecionar gente boa e inédita em prosa e verso, fora das panelas adjacentes, para darem espaço e promoveram a cultura propriamente dita em tempos pós-pós-modernos.
Pior são os artigos que traduzem de outros jornais estrangeiros, matérias esquentadas enchendo linguiça com páginas e páginas a exaustão de um mesmo assunto chato por ocasião de uma data mundial, de um aniversário batido pela mídia internacional, mas tudo estrangeiro e rococó, chatos, cansativos, quando as opiniões tupiniquins são literalmente café pequeno no espaço. Enfim, o caderno “Mais”, nosso último panteão de cultura, nosso último baluarte, está em decadência, estranhamente também decaindo cada vez mais em conteúdo e essência, e tá como a própria “Revista da Folha”: só coisa reles que não soma nada culturalmente, com honrosas exceções aqui e ali numa edição bem bolada por exceção ou acidente de pauta, talvez. Como eu disse inicialmente, foi-se o tempo em que os jornalões eram motivos de reunião de família, de debates em alto nível, de leitura prazerosa, de acirrados diálogos em escritórios, clubes e escolas, de troca de ideias monumentais e que permitiam espaço ao rebento criativo novo, veiculando muita poesia e ficção sarada, além de grandes ensaios e generosa crítica artístico-cultural. Afinal, não é, quem é que lê poesia? Poesia não vende, logo, não dá lucro. Que se danem os pobres poetas e suas sensibilidades viciadas em escapes virtuais na internet menos seletiva e boçal, claro, e mais divulgadora pra gosto geral. Afinal, livro ainda é mercadoria, no mau sentido. Então melhor encher os jornalões de cadernos sobre barcos, turismo, casas, carros, esportes, comportamento, sociedade decadente, economia neoliberal globalizada (vade retro!), política, etc. deixando o caboclo leitor brasileiro literalmente a ver navios com a falta de disseminação cultural que poderia mudar corações e mentes, politizar, criar núcleos seletivos que propiciariam a curto e médio prazo mudanças sociais abrangentes no Brazyl S/A de tantos contrastes sociais, tantos lucros impunes, riquezas injustas, muito ouro e pouco pão. Mas, quem é que quer isso a partir da cultura, ou da poesia?
E nem se habilite o cidadão pensador aí, em mandar um belo texto cultural pra coluna Tendências e Debates da Folha, ou mesmo um poema inédito e de qualidade pro caderno “Mais” dominical, quando não um release sobre evento cultural pra “Folha Ilustrada”, que eles antes agradeciam formalmente e diziam que já tinham muitos trabalhos bons – então por que não selecionam os recebidos aos montes e suspeitamente só publicam os ruins, de qualidade duvidosa e dos amiguinhos de sempre? Pois agora eles nem agradecem mais. Não interessa e pronto. Você pesquisa, capricha, formata, junta currículo, envia e nada. Quem mandou querer ser escritor, crítico, quem mandou estudar e pesquisar pra isso?
Cada vez pior em cultura
Para a chamada grande imprensa, a questão cultural não é importante e ponto final. Isso exigiria um ótimo debate. Quem sabe o resgate cultural de nossa grande imprensa passe por uma conclamação geral, acadêmica, jornalística, baseada mesmo em apoio oficial e das chamadas terceiras vias? Acredito e aposto nisso. União Brasileira de Escritores e Associação Brasileira de Imprensa, mãos à obra! Criadores do Brasil, uni-vos!
Curto e grosso, azar nosso. Temos que, ou esquecermos o conhecimento cultural propriamente dito a partir dos veículos de comunicação em geral; repensarmos um jornalismo cultural que deveria ser valorado sob todos os aspectos até como formador de opinião e embasamento politico-educacional, ou, deixar de comprar os jornalões principalmente aos domingos, e comprar, isto sim, uma revista literária de qualidade e, aí sim, ler com prazer, chamar a família pro acervo, clamar pra leitura saudável no meio, reger pesquisas de todos os tipos, cobrar opiniões, trocar figurinhas, valorar no seio do clã a cultura em geral, pois, do jeito que está, se deixarmos que os jornalões e os veículos de comunicação televisivos e radiofônicos do jeito que estão, estamos perdidos, com tantos programas de fofocas e de esoterismos tantãs no rádio, com tantos programas sobre violência policial e de estereótipos de minorias na tevê, para não dizer os infanto-juvenis que, qualquer pai de bom senso vigia e seleciona para os filhotes em crescimento, porque a barra tá pesada nessa área. Novos tempos? Estamos cada vez pior em cultura na imprensa, e alguém ter que colocar o dedo na ferida, pois, afinal, não é mesmo o bom leitor que berra?
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[Silas Corrêa Leite é poeta, educador e jornalista comunitário]