Saturday, 21 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Quase amor por Minas

É verdade, por pouco o mineiro mais carioca dos muitos mineirocas (ou carioqueiros), que tantos gritos de amor ao Rio de Janeiro já fez ecoar, não disse amar também Minas Gerais. “É claro que admiro muitos escritores mineiros, sou fã da história do estado e não troco por nada tutu, torresmo, angu, suã com arroz, canjiquinha e várias verduras. Um de meus restaurantes favoritos é o À Mineira.”

Não troque de canal, leitor, a conversa com esse que é um dos maiores biógrafos brasileiros, autor de livros sobre Mané Garrincha, Carmem Miranda, Olavo Bilac e Nelson Rodrigues, não se alongará no repisado assunto da – até o escritor João de Minas foi para o Rio de Janeiro – diáspora mineira.

Também responderá a perguntas sobre futebol, pesquisa histórica, jornalismo atual, política, escrever para jornal, a Folha de S.Paulo, que auxiliou a ditadura, Brasil francês ou Brasil estadunidense, livros e complexo de vira-latas, entre outros temas. Fabuloso biografável, disse sobre Carlos Drummond de Andrade, mas informou haver uma pedra duríssima no meio desse caminho: herdeiros.

Para Ruy Castro, “o Brasil era mais inteligente quando falava fecho-éclair em vez de zíper e rouge em vez de blush”. Segundo Ruy Castro, “os políticos brasileiros, sim, é que deveriam ser menos vira-latas”. Conforme Ruy Castro, “o antigo LP, a mulher e o gato estão entre os mais belos desenhos do mundo”.

Nesta entrevista exclusiva, indagado a revelar algo insólito que fez para obter informações, contou ter namorado uma mulher mais para ativar uma boa fonte, o pai da cuja, que lhe não jorrava.

Mineiro inventa tudo. Digamos que criou uma máquina pela qual é possível falar e ser escutado por todos os brasileiros, simultaneamente. Se fosse usá-la para falar duas verdades urgentes sobre o Brasil, o que todos ouviríamos?

Ruy Castro– Sinceramente, não me julgo dono de verdades, muito menos urgentes, para dizer ao Brasil.

Como um homem de 1948 vê essas mudanças todas causadas pela tecnologia: o que mais lhe tem feito bem e o que mais lhe tem causado desconforto?

R.C. –Vejo com apreensão. Nunca tantos se deslumbraram tanto pela tecnologia como atualmente. Me espanta ver a quantidade de gente na rua olhando para um aparelhinho na palma da mão. Não sei o que têm tanto a falar uns com os outros. Mas gosto de saber que, graças à tecnologia, posso ter hoje todos os livros, filmes e discos que quiser. E, naturalmente, devo a ela e à evolução da medicina estar vivo – pelos perrengues de saúde que passei nos últimos sete anos.

A pesquisa histórica é um prazer também. Rastrear um bom assunto, descobrir uma fonte rara, escarafunchar arquivos, ouvir idosos, achar um recorte valioso, elucidativo… Fale, por favor, sobre a parte gostosa desse trabalho.

R.C. –Você já disse tudo. É um trabalho tão gostoso que não o divido com ninguém. Mesmo porque, quando se trata de um livro, ninguém tem o livro inteiro na cabeça, como faço questão de ter, para poder reagir imediatamente diante de qualquer informação nova e inesperada. Numa biografia, a investigação é 70% do trabalho – escrever, os outros 30%.

Em suas pesquisas sobre o Rio de Janeiro, já esbarrou no itabirano João Batista Viana Drummond, o Barão de Drummond, empresário influente na corte, criador do jogo do bicho e impulsionador do bairro Vila Isabel?

R.C. –Sim, todo mundo no Rio já ouviu falar no Barão de Drummond. Era também linha de ônibus. Só não sabíamos que era de Itabira. 

Outro itabirano marcante no Rio foi… Não, não vou citar o poeta. Trata-se de Luiz Camillo de Oliveira Netto, historiador, bibliófilo, professor e conspirador, articulador da célebre entrevista de José Américo de Almeida a Carlos Lacerda, publicada em 1945 no Correio da Manhã, paulada violenta em Getulio Vargas. O senhor se refere a esse assunto em O Leitor Apaixonado, página 159, sem citar Luiz Camillo, cuja casa em Botafogo (Rua da Matriz, 22) era centro de discussão política e filosófica, lugar de oposição a Vargas, frequentado por Murilo Mendes, Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende, Hélio Pellegrino, Jayme Ovalle, Gustavo Corção e muitos outros. Luiz Camillo já apareceu em suas pesquisas?

R.C. –Esse, para mim, é novidade. Mas, pelas pessoas de que se cercava, deve ter sido um homem interessante.

Muito. Caso queira conhecer a trajetória dele, sugiro o livro Perfil Intelectual(Editora UFMG), rapadura de quase 700 páginas, de Maria Luiza Penna. Continuemos a entrevista. Impossível para este jornal entrevistar um escritor de alto calibre e não perguntar sobre – agora, sim – Carlos Drummond de Andrade. O que mais gosta na obra dele, o que menos gosta?

R.C. –Fui apresentado a Drummond em 1967 ou 68 pelo Ricardo Cravo Albin, no Museu da Imagem e do Som. Muito prazer, o prazer é meu, mas, infelizmente, ficou nisso. Em certo período, fui grande leitor de sua poesia, que admiro muito em todas as fases – e, nessas fases, houve vários Drummonds – até, pelo menos, “Lição de Coisas” (1962). Depois não acompanhei muito. Mesmo os poemas de circunstância, como os de “Viola de Bolso”, são extraordinários. Do Drummond cronista gosto menos. Acho que ele seria um fabuloso biografável – se os herdeiros deixassem. 

Se pudesse conversar por meia hora com um grande brasileiro já morto, quem seria e qual seria o papo?

R.C. –Manuel Antônio de Almeida, o autor de Memórias de um Sargento de Milícias. Para aprender sobre ele tudo que seus contemporâneos não registraram. 

Qual foi o ato mais insólito que já fez para obter uma informação?

R.C. –Namorar a filha de um sujeito que não queria me servir de fonte. Com isso, uni o agradável ao agradável. 

Um biógrafo é também desfazedor de lendas. Como é, para o senhor, quando a verdade estraga uma história saborosa e o obriga, por dever do ofício, a escrever: “Isso é mentira”. Bate um pesar?

R.C. –Não. Entre uma boa história e uma história verdadeira, nem pisco, prefiro a segunda. Além disso, as “boas histórias” costumam ser conhecidas por todo mundo. Bom mesmo, quando necessário, é desmenti-las.

Com tantos quilômetros andados na estrada no jornalismo, qual é a melhor história que presenciou numa redação?

R.C. –Melhores, houve muitas, mas prefiro citar a pior: a invasão do Correio da Manhã na noite de 13 de dezembro de 1968 – a do AI-5 [Ato Institucional número 5] – pelas forças de segurança. O Correio nunca mais seria o mesmo. Nem eu.

Entrevistei recentemente o ótimo fotojornalista Pedro Martinelli, crítico acérrimo do jornalismo atual. Disse-me que os jornalistas e fotógrafos de hoje, se folheassem jornais dos anos 1970, teriam vergonha do que fazem. O jornalismo brasileiro atual está mesmo tão ruim?

R.C. –Sinceramente, acho os jornais de hoje mais bonitos e bem organizados. Os do passado eram uma bagunça, nada parecia estar no lugar certo. E, desde a reforma editorial e gráfica feita pelo Janio de Freitas no Jornal do Brasil em 1959 – e que a maioria dos jornais demorou a seguir –, a maneira de escrever também ficou mais limpa. Mas, de fato, a média dos jornalistas de hoje não é tão preparada quanto a dos anos 80 para trás. Eu disse a média, note bem. Eu, por exemplo, encaro cada repórter que vou te contar. Mas, em todas as épocas, você vai ter muita gente boa e muita gente ruim. Antigamente também havia repórteres que não sabiam juntar duas palavras. Uma diferença que observo é que, no meu tempo de repórter, os chefes eram mais velhos e experientes, alguns tinham 30 anos de casa. No Correio, por exemplo, saí muito a trabalho com o Luiz Bueno, o fotógrafo mais antigo da imprensa brasileira – 50 anos de carteira só no Correio da Manhã quando o conheci, em 1967. Era maravilhoso também bater uma matéria, no meio da redação, e saber que o homem ao seu lado, escrevendo crítica de cinema, era o Moniz Vianna. Hoje os chefes são só um ou dois anos mais velhos que os chefiados.

“Escrevo na Folha de S. Paulo, jornal que colaborou com a ditadura militar de 1964 a 1985, à qual emprestou carros para transportar presos políticos.” O senhor já fez um solilóquio com esse teor?

R.C. –Não. Nunca convivi na Folha com as pessoas que fizeram isso. Além disso, a Folha se tornou um outro jornal a partir dos anos 80, que é quando fui trabalhar lá. E não sei de nenhum órgão da imprensa brasileira que não tivesse, em alguma época, um rabo preso com algum governo. A Última Hora, por exemplo, que foi o único jornal do Rio a não apoiar o golpe de 1964, tinha sido fundada em 1951 pelo Samuel Wainer com dinheiro facilitado pelo Getulio [Vargas]. O próprio Correio foi quem botou o João Goulart para correr com dois editoriais de primeira página, nos dias 31 de março e primeiro de abril, “Basta!” e “Fora!”, escritos, ironicamente, por um trotskista, Edmundo Moniz. E, dali a dois dias, foi o primeiro jornal a atacar o regime militar, através da coluna do Carlos Heitor Cony.

O senhor disse detestar política. Não é justamente isso o que querem os políticos ladrões, safados, canalhas, nepotistas, demagogos, tiranos, aproveitadores do atraso: que os bons detestem política, fiquem longe, para eles, os corruptos, tomarem conta da grana pública bem à vontade?

R.C. –O fato de detestar política não me impede de tapar o nariz e tratar do assunto na minha coluna na Folha, como faço de vez em quando. E mesmo que adorasse política e vivesse de falar do assunto, os políticos continuariam tomando conta do dinheiro público à vontade. Aliás, detesto economia, também.

Acabar com o complexo de vira-lata do brasileiro, se é que ainda há esse complexo, passa pela política?

R.C. –O Brasil é ciclotímico, ora está eufórico, ora na fossa. Para quem aguentou tantos anos de ditadura, esse período democrático que já dura 22 anos, mais longo do que o que se viveu entre 1946 e 1964, deveria ser suficiente para acabar com qualquer complexo de vira-lata. Os políticos, sim, é que deveriam ser menos vira-latas. 

O senhor faz ótimo trabalho para aumentar o número de leitores no Brasil: escreve textos culturalmente enriquecedores, bons de ler. Não sente vontade de contribuir também no plano governamental para que o Brasil vire um país de leitores? Ser ministro da Cultura, por exemplo, e sair Brasil afora a plantar bibliotecas.

R.C. –Não. Minha função é plantar livros. Sou também um grande plantador de estantes. Em quase todas as casas em que já morei, construí ou instalei uma e, ao me mudar, deixei-a para trás e construí outra na casa nova. Recentemente, recuperei a primeira estante que tive, em Caratinga, mandada fazer pelo meu pai quando eu tinha 10 anos. Uso-a hoje para guardar os livros e gibis que tinha naquela idade, e que achei em sebos por todo o Brasil.

Suspeito que o Brasil se empobreceu muito depois que parou de se inspirar na França e passou a macaquear os Estados Unidos. Como admirador da cultura estadunidense, o que diz?

R.C. –Acho horrível. O Brasil era mais inteligente quando era francês – quando as pessoas falavam fecho-éclair em vez de zíper e rouge em vez de blush. Quanto à cultura americana que admiro, também não tem muito a ver com os Estados Unidos, e sim com Nova York e com imigrantes europeus.

Velho assunto, a diáspora mineira. Até João de Minas foi para o Rio de Janeiro, esponja absorvedora de escritores das Montanhas. O destino de Minas Gerais é prover o Rio com grandes escritores?

R.C. –Isso é você que está dizendo. Mas o Rio recebeu e recebe também muitos baianos, pernambucanos, cearenses, gaúchos e até paulistas. Chegando aqui, todos se tornam naturalmente cariocas.

“Sou tão mineiro quanto Milton Nascimento é carioca.” Sabemos do amor do senhor pelo Rio de Janeiro, mas e Minas Gerais? Por favor, fale um pouco do que gosta em seu estado natal: escritores, história, culinária, música, sei lá…

R.C. –Provavelmente, gosto mais de Minas Gerais do que o Milton do Rio – a diferença é que ninguém no Rio fica cobrando isso dele. Aliás, ele também mora aqui. Mas é claro que admiro muitos escritores mineiros, sou também fã da história do estado e não troco por nada neste mundo tutu, torresmo, angu, suã com arroz, canjiquinha e várias verduras. Um de meus restaurantes favoritos no Rio é o À Mineira, no Humaitá. Quanto à música, alguns de meus heróis são Ary Barroso, Synval Silva, Alcyr Pires Vermelho, que conheci quando morava no Flamengo, Ataulpho Alves, Geraldo Pereira, muitos mais, todos mineiros – mas eles faziam música mineira? Apenas para esclarecer: quando nasci, em Caratinga, em 1948, eu tinha uns 40 parentes, entre tias e primos, no Rio. Em Caratinga, tinha dois: meu pai e minha mãe. Eles saíram do Rio, onde moravam no largo da Lapa, para trabalhar lá – e me levaram junto, tanto que nasci poucos meses depois. Minha infância, até os 12 anos, foi passada igualmente em Caratinga e nas ruas Barão do Flamengo, Senador Vergueiro, Paissandu, do Catete, entre outras, e na própria Lapa. Lembro-me perfeitamente, e com amor, de cada dia, cada rua e cada acontecimento nas duas cidades. O irônico é que, hoje, ao voltar àquelas ruas no Rio, elas ainda estão bem parecidas com as do passado. Já Caratinga se tornou outra cidade, irreconhecível. As lindas casinhas com varanda e jardim deram lugar a prédios altos e horrendos, os cinemas acabaram, não há mais bibliotecas, nem grupo de teatro, os campinhos de pelada sumiram, o trânsito é uma zona, todo mundo pega o carro para ir daqui até ali, e as pessoas com quem eu gostava de conversar sobre cinema, literatura e jornal já morreram. 

Ninguém passa navalha no pescoço por receber elogios, mas como é ouvir sempre esta sentença: “Ruy Castro, um dos maiores biógrafos do Brasil”? Até que ponto cutuca a vaidade do senhor?

R.C. –Tomo isso como um elogio não a mim, mas ao meu trabalho.

Nenhum leitor apaixonado por livros terá tempo de vida suficiente para ler todas as boas obras. Essa limitação é uma angústia – ou pelo menos um aborrecimento – para o senhor?

R.C. –Não. Estou mais interessado em reler tudo de bom que já li até hoje. 

Futebol. Por que, em partidas decisivas, os árbitros sempre erram em favor de times do Rio e de São Paulo? É histórico. Acredito que, em jogos que decidem campeonatos ou vagas para semifinais e finais, os homens do apito jamais erraram favoravelmente a times do nordeste ou do sul, por exemplo. O meu Atlético já foi garfado várias vezes contra o Flamengo do senhor. Isso é uma safadeza…

R.C. –Eu estava esperando por essa pergunta. Mas concordo parcialmente com você: os árbitros sempre erram a favor dos times de São Paulo.

A presença do trem na literatura e no cinema é intensa. Há, em ambas as artes, alguma passagem com esse veículo que se tornou inesquecível para o senhor?

R.C. –Inúmeras, claro. Mas prefiro lembrar a época em que usei com certa frequência o Trem de Prata – Rio-São Paulo e vice-versa –, entre 1978 e 1981, por aí. Uma de minhas preocupações era comprar uma cabine com leito transversal ao trilho. Quando se viajava avec, não podia haver nada melhor.

Esther Williams, Zsa Zsa Gabor, Marilyn Monroe, Rita Hayworth, Linda Stirling, Ava Gardner, Stella Stevens… Há algo mais belo que a boniteza feminina?

R.C. –Não. Acho que os três designs mais perfeitos do mundo são a mulher, o antigo LP e o gato.

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[Marcos Caldeira Mendonça é editor de O TREM Itabirano]