Em 1976, em plena ditadura militar, fui morar em Salvador com uma companheira, Sonia, que hoje é a mãe da minha única filha, Maíra. Na bagagem, o endereço da única figura por mim previamente conhecida, o Ivan, que, formado em Sociologia pela USP, onde nos conhecemos, retornara à boa terra onde trabalhava como jornalista da Tribuna da Bahia. Os recém-chegados (nós) é claro que fizemos do Ivan – pessoa de fácil convivência e papo bastante agradável – nosso principal conviva naqueles primeiros tempos soteropolitanos. Frequentávamos seu apartamento no bairro da Piedade e ele também nos visitava, amiúde, em nossa vivenda, como dizem os baianos, na Gamboa de Cima.
Alguns meses depois iniciou-se, em todo o Brasil, uma campanha eleitoral para prefeitos e vereadores (em Salvador, apenas para vereadores, pois os prefeitos das capitais eram nomeados pela ditadura). Certa feita, em plena campanha eleitoral, recebemos um convite do amigo jornalista nos seguintes termos:
“Nasci em Amargosa, cidadezinha localizada a 235 km de Salvador. Lá há dois candidatos a prefeito: um negro, que concorre pela Arena 1, e um branco, pela Arena 2. Como o negro fez campanha dizendo ‘não vote em branco, vote em mim’, o branco se viu no direito de revidar na mesma moeda: ‘Não vote em preto, vote em mim’. Foi acusado de racismo e a polêmica está rolando solta por lá. Normalmente, pelas limitações financeiras do jornal, não teríamos condições de cobrir a pendenga interiorana mas eu procurei o editor-chefe e me propus a fazer a matéria sem ônus para a empresa, pois queria passar alguns dias com meus pais. Toparam, e eu estou convidando vocês para virem comigo conhecer a minha terra.”
Desnecessário dizer que, prontamente, aceitamos o amável convite.
“Calçola suja”
Só me lembro de alguns detalhes (isso ocorreu há 36 anos), mas eles fazem daquela uma viagem marcante e inesquecível. A começar pelo dia em que chegamos. À noitinha fomos assistir a um comício do candidato preto. Seu trio elétrico estava estacionado numa rua de cujo nome não me lembro, mas que tinha recebido este nome por iniciativa daquele candidato, que era presidente da Câmara de Vereadores. Um trecho marcante do seu discurso naquele comício:
“Tenho orgulho de dizer que esta rua se chama ‘fulano de tal’ por minha iniciativa enquanto vereador. Antigamente era chamada ‘Rua de Palha’ porque suas casas recebiam esta cobertura. Seus moradores se sentiam incomodados de morar numa rua chamada ‘de Palha’. Antigamente as casas da rua abrigavam o baixo meretrício. Hoje em dia nem há mais cabarés, nem as casas têm teto de palha, mas o estigma da ‘Rua de Palha’ permanecia, enchendo de vergonha os novos moradores (sic).”
Este era o “grande feito” por ele alegado no comício. Lembro-me, também, de ter reclamado do fato do opositor branco chamar o seu trio elétrico de “Calçola suja” em alusão às proporções modestas do seu caminhãozinho de som. O do adversário, ao que parece, era bem maior e melhor equipado…
“Boneca Deslumbrada”
Depois do memorável comício, conversamos com o candidato, que nos mostrou a gravação do discurso em que o branco incitou os eleitores a não votarem em preto… Detalhe relevante, o candidato da Arena 1 era também empresário, dono de uma próspera loja de confecções chamada “Boneca deslumbrada” (ou seria “Boneca cobiçada”?).
No dia seguinte acompanhamos o Ivan numa entrevista com o candidato da Arena 2, na casa dele. Fomos, evidentemente, muito bem recebidos – com café e cuscuz – por ele e por alguns de seus correligionários na confortável varanda de sua casa. Foi aí que ouvimos, da boca do dono da casa, a seguinte pérola: “Este sujeito está querendo se prevalecer da desgraça de ser preto.”
Caso interesse a alguém saber, a despeito do tamanho e da potência do trio elétrico do seu opositor, o proprietário da loja “Boneca Deslumbrada” foi eleito prefeito, para o quadriênio 1977-80, da simpática cidade de Amargosa-BA.
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[Joca Oeiras é jornalista]