Tenho uma passagem com o jornalista Evandro Carlos de Andrade, quando ele era diretor de Redação de O Globo, da qual já dei notícia numa memória intitulada “Lição de jornalismo”, que figura no meu livro Jornal amoroso. É uma passagem de muita atualidade. Um pouco de nostalgia para situar o leitor: era eu, no começo dos anos 1970, uma espécie de factotum de Deodato Maia, secretário da madrugada de O Globo: redigia as matérias de última hora, atualizava os telegramas da Guerra do Vietnã e corria à oficina para fiscalizar a paginação, numa época em que ainda prevalecia a imprensa de chumbo de Gutenberg e aquele jornal carioca conservava um quê de vespertino.
Certa madrugada, atendi a telefonema de um intermediário de Mariel Mariscot, o policial que passara para o lado dos bandidos e virara o inimigo público número 1 da cidade. O interlocutor propunha dar ao Globo o privilégio de entrevistar Mariel se concordássemos com duas ou três exigências. Vislumbrei a chegada dos meus 15 minutos de glória. Expus o caso ao velho Deodato. Ele puxou uma tragada no seu Hollywood, pigarreou ao estilo e anunciou: “Vou consultar o Evandro.” Grande expectativa no coração disparado do jovem jornalista cabeludo de calça boca de sino. Volta Deodato com a resposta de Evandro: “Diga ao Pedro que O Globo não faz acordo com foras da lei.” Contou-me outro dia o colunista Merval Pereira que o preceito da família Marinho, enunciado pelo saudoso Evandro (quanta falta faz!) permanece como um dos pilares do maior jornal do país. Eu não imaginava o contrário. Os “capitães da imprensa” não são novidadeiros, repórteres é que o são. Eles cruzam na vida com Deus e o Diabo. E às vezes repetem o Fausto.
De mãos dadas com o risco
É o que parece ter acontecido recentemente. Parece, pois não se sabe se é vero. Para sabermos, é necessário que o jornalista Policarpo Junior vá à CPMI do Cachoeira para esclarecer se fez ou não fez o pacto com o infausto personagem de Goethe. Policarpo precisa esclarecer o motivo de ter sido escolhido por Cachoeira, um dos atuais Mariscot, para ser o depositário das bombásticas informações do fora da lei. Não entendo o motivo da enxurrada de artigos de proteção ao jornalista alçado ao posto, quiçá não almejado, de queridinho do fora da lei. Assim como a CPMI tem a tropa de choque de parlamentares que defendem a Delta, todo dia aparece um jornalista, um sociólogo, um historiador, achando um despropósito a convocação de Policarpo, como se jornalista tivesse imunidade.
Ora, o que se quer saber é muito simples: por que o Cachoeira escolheu o jornalista de Veja, e não outros bambambãs de O Globo, da Folha, do Estadão, da TV Globo, do Correio Braziliense ou de qualquer outro veículo? Tão bons repórteres quanto Policarpo. Mas não; os furos apurados pelo fora da lei Cachoeira só eram destinados ao Policarpo. Videotape do mensalão? Cachoeira entrega para o Policarpo. Roubalheira no Denit? Cachoeira apura e repassa ao Policarpo. Policarpo quer pegar o Zé Dirceu? Sem problema: o araponga do Cachoeira, um tal Dadá, põe uma câmara escondida no hotel e entrega as fotos para o Policarpo. Como novidadeiros, repórteres andam de mãos dadas com o risco.
Não se cale na sua modéstia
E eu não sei disso? Na minha época de repórter itinerante do Jornal Nacional na Amazônia, fiz amizade com muitos aviadores. É uma turma muito boa, a gente sempre aprende com eles. São excelentes fontes de informação. Além do mais, no meu caso, me faziam voos fiados, eu pagava quando a verba de produção chegava porque, como sabemos, na televisão o espetáculo não pode parar. Um dia, quando eu já havia voltado para o Rio, deu na imprensa que alguns daqueles meus amigos pilotos de garimpo tinham sido presos por transportar cocaína. Que beleza, hein, seu Pedro? Com quem você andava, rapaz! Mas o repórter então conhecido nacionalmente teria de muito bom grado se apresentado ao delegado Paulo Lacerda, chefe da Polícia Federal em Rondônia, se ele tivesse me convocado a fim de apurar o que fazia um retrato meu confraternizando com os acusados em cima do aparador da sala de visitas da “república” dos aviadores, varejada pelos policiais. O repórter do JN teria dito ao delegado: eu gostava dos elementos, seu doutor; eles me homenageavam sempre que eu passava por Porto Velho, com um churrasco sensacional. Desconhecia que eram pilantras e eu nem fumo nem cheiro, seu doutor. E zéfini. É o que o jornalista de Veja deveria fazer: contar o que sabe e zéfini.
A palavra-chave neste caso é apuração, vocábulo registrado em qualquer dicionário de jornalismo. É preciso apurar, pois é o primeiro passo no caminho da verdade, como aprendemos na faculdade ou na escola da vida. Além disso, o mundo é mau e tem sempre gente linguaruda para assacar inverdades. Como na fábula de Araxá, por sinal a terra natal de Cachoeira. Havia nesta cidade mineira um farmacêutico, homem sério e bom. Madrugador no seu ofício, viu as primeiras chamas do incêndio criminoso que consumiu o cartório no silêncio da madrugada. Valente, o farmacêutico enfrentou o fogo para salvar o que podia. Foi um herói. Mas, sempre recolhido, não quis alardear o feito para o quinzenário da cidade. Calou-se na sua modéstia. Anos depois, duas senhoras provectas estão debruçadas na janela de um sobrado, espiando a vida. Vem de lá o farmacêutico. Uma diz pra outra: “Olha só quem passa…” “E quem é ele, menina?” “Aquele farmacêutico que esteve ‘envolvido’ no incêndio do cartório!” Vai, Policarpo, vai à CPMI, não se cale na sua modéstia, conte tudo para não virar personagem das futuras velhinhas do Brasil inteiro.
***
[Pedro Rogério Couto Moreira é jornalista, Brasília, DF]